domingo, 11 de fevereiro de 2007

Ética e Ciência

Ética e Ciência. Alguns prismas.


Na vida acadêmica cada pesquisador trata do que é mais seguro para si mesmo e as buscas inter-disciplinares ainda residem apenas nos sonhos. Algumas iniciativas acalentam esperanças de melhoria neste âmbito. Na Universidade foram iniciadas há pouco tempo algumas trocas de saberes entre engenharia e medicina, linguistica e psicanálise, química, medicina, filosofia. Na Unicamp surgem trabalhos desenvolvidos por jovens docentes, com sua equipe de estudantes. (1) Eles observam a sensibilidade humana em prismas diversos, da visão das cores à dor. Esses problemas não são novos e já surgem com a medicina antiga, talvez antes mesmo dos tratados hipocráticos. Trata-se desde então de buscar os sinais e os interpretar. E os sinais apresentam-se nos orgãos e sentidos humanos. Todos os médicos, dos mais carentes de recursos técnicos aos que usam instrumentos sofisticados, os que viviam no século 5 antes de Cristo ao século 3 depois de Cristo, ou os que vivem em nossos dias, diante de um ser humano adoecido devem observar antes de ajuizar. Mas observar o que e como observar? O médico hipocrático enuncia (acostumado como todos os seus conterrâneos à teoria, o olhar que perscruta) ser preciso sempre observar com os sentidos.

Não nos damos conta suficiente da importância da theoria enquanto olhar, para a compreensão de nossas práticas cientíticas e morais. "Desde a Antigüidade até Kant e Hegel" diz Heidegger, "a intuição representa o ideal de todo conhecimento". O termo usado por Heidegger, Anschauung corresponde à theoria grega e ao intuitus latino, o golpe de vista. Tal referência une-se ao pensamento especulativo, especular. Intuitus, ato de olhar, se nota diretamente na idéia da mente como espelho, intuitio sendo a imagem o refletido. Speculator, o pesquisador que observa, compartilha o mesmo vocábulo de "espião". Intueor marca o olhar atento, o fato de observar, penetrando as coisas.

Em Descartes, por exemplo, a intuição desempenha papel essencial no conhecimento. Aquele pensador distingue entre dedução e intuição. A segunda seria própria à "inteligência pura e atenta".(2 ) A dedução sendo "tudo o que se conclui necessariamente de certas outras coisas conhecidas com certeza". (3 ) Em Kant, na Critica da Razão Pura, lemos que "de qualquer modo e através de qualquer meio que um conhecimento possa relacionar-se com os objetos, o modo pelo qual ele se relaciona imediatamente aos objetos e para o qual tende todo pensamento enquanto meio é a intuição". E temos o batido símile kantiano, para o nexo entre sensibilidade e intelecto : "pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas". Deste modo, o conhecimento é um olhar que pensa, reflete. Em Hegel, leva-se ao máximo refinamento esta metáfora optica. A vista não deve, pensa Hegel, para captar o movimento do mundo e dos homens, ser limitada a um dos componentes do real. "A pura luz e a pura obscuridade são dois vazios idênticos. Só na luz determinada -e a luz é determinada pela obscuridade- e portanto só na luz turva pode-se distinguir algo. Assim como só na obscuridade determinada -e a obscuridade é determinada por meio da luz- e portanto na obscuridade iluminada, é possível determinar algo."(4 ) Hegel conduz a metáfora do espelho ao seu nível mais complexo, sem romper com ela. A especulação, ainda na Ciência da Lógica, significa "compreender o oposto na sua unidade" , mas esta última, a síntese, suscita o seu oposto, num movimento de espelho : "do aparecer reflexivo, quer dizer, do espelhar recebe o speculari (speculum: espelho) sua suficiente determinação", diz Heidegger. ( 5)

O pensamento erra, buscando para além do mundo sensível as determinações certas e válidas desde sempre. Quando capta o verdade, o faz através da intuição, a vista imediata do essencial. O pesquisador, neste ponto, passa ao conhecimento. Indicadas as marcados do pensamento enquanto olhar, eis o que indica um velho escrito intitulado Oficina do Médico: “Ou as coisas semelhantes ou as coisas dissemelhantes, a começar pelas mais importantes, as mais fáceis, as conhecidas em todos os pontos totalmente. As coisas que é possível ver, tocar, ouvir. As coisas que é possível perceber pela vista, pelo tato, pelo ouvido, pelo nariz, pela lingua, pela inteligência. As coisas que é possível conhecer, com tudo aquilo com o qual conhecemos”. Não apenas essa passagem célebre e controversa na sua interpretação já desde Galeno, mas também em outras, também inscritas no Corpus hippocraticum, temos a idéia do concurso dos sentidos na armação do diagnóstico. Como nos livros sobre As Epidemias : “saber que pelos olhos, ouvidos, nariz, a mão se formam os juízos, o doente, o operador, seja tocando, seja cheirando, seja degustando, seja, no resto, conhecendo. Cabelos, cor da pele, a própria pele, vasos, tendões, músculos, carnes, ossos, encéfalo, o que vem do sangue, vísceras, ventre, bile, os outros humores, articulações, batimentos e tremores, convulsões, o que é relativo à respiração; defecações, meios pelos quais conhecemos”. Esses são, diz o escritor anônimo, os meios: “tomar o corpo do doente como objeto de exame, vista, ouvido, nariz, tato, gosto, razão”. Essas notas eu as extraio do bonito livro de Jacques Jouanna: Hippocrate (Paris, Fayard, 1992).

Essa busca do conhecimento, dos sentidos e pelos sentidos, atravessou os séculos filosóficos e médicos com profundas articulações na epistemologia e na política, ética e vida social. No século 16 o grande incentivador da ciência, Francis Bacon, mostrou a importância dos instrumentos técnicos na determinações dos saberes. O telescópio e o microscópio, dizia ele, seriam próteses estratégicas para que pudessemos alcançar algum saber. Todo o chamado empirismo inglês e seus herdeiros das Luzes francêsas do século 18, como Denis Diderot (filósofo, médico, matemático, grande impulsionador da tecnologia) dedicaram-se ao estudo dos sentidos e da tradução dos sentidos entre si. No século 19, o maior pensador dialético da modernidade, Hegel, disse em frase cortante: “a palavra ´sentido´ é maravilhosa, porque abarca ao mesmo tempo o lógico e o corporal”. Esses princípios são éticos, sociais, políticos e jurídicos, e ainda hoje definem desafios ao pensamento científico e filosófico.

Fiz essa resenha rápida para recordar que o mundo da pesquisa pretérita muito se esforçou por atingir as fontes dos sentidos e a sua conexão. Quando, com os saberes da atual química, da biologia, da medicina, das ciências humanas, um grupo da Unicamp joga-se nessa bela aventura do espírito, creio ser necessário nos alegrar com a sua coragem, generosa temeridade, espírito inovador nos permanentes campos que acicatam a inteligência humana e a empurram ao saber científico.

Mas vejamos o estado da arte na base ideal da bioética, nos seus principios e fundamentos. Quais temas atuais temos neste setor árduo do saber ? Recordo os desafios apresentados à pesquisa em bioética na biotecnologia, sobretudo em matéria momentosa para nós, o dos organismos geneticamente modificados. Neste setor, chocam-se o movimento da ciência, das tecnologias, do mundo econômico e político, com repercussões filosóficas e mesmo religiosas. Todo universitário que se preocupa com o futuro da humanidade segue os embates entres essas várias esferas e conhece o que se passa em plano jurídico em nosso país. De todos os lados argumentos ponderáveis, pro e contra os mencionados procedimentos, apresentam-se nos debates, artigos, livros e discursos nas cátedras, nos pulpitos, nas tribunas parlamentares.

Outro campo minado é o das experiências com animais e seres humanos. Essa preocupação atinge os mais profundos pensadores filosóficos da atualidade. (6 ) As eternas questões da eutanásia e do aborto, postas nos limiares da vida e da morte, os dois instantes mais humanos da nossa existência e os que mais merecem reflexão, trazem as mesmas moles de estudos, debates, lutas em artigos, livros, etc. O julgamento do STF sobre o aborto, determinam as dificuldades legais para todos os envolvidos no problema, dos médicos aos sacerdotes de todas as crenças e sobretudo para os genitores atormentados.

Os problemas dos comportamentos éticos e sexuais também indicam setores de embate, não raro pouco serenos e prudentes. As uniões entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de filhos por casais assim constituidos, todos esses itens trazem desafios à reflexão ética e bioética atual. As relações dos generos no casamento, as doenças como a Aids, os dilemas do financiamento dos adoecidos, os recursos públicos e mesmo o direito de propriedade, com a relativização de patentes, são desafios à bioética muito apreciáveis.

As questões ecológicas e técnicas ainda suscitam e suscitarão cada vez mais estudos e advertências aos seres humanos. Pessoalmente, sou dos que não se comovem com as profecias apocalipticas tal como as contidas nos escritos do filósofo Martin Heidegger, para quem o nosso proton pseudos encontra-se na técnica, e em pensadores como Hans Jonas (O princípio responsabilidade) que a partir do mesmo Heidegger traça uma via de responsabilidade pelo planêta, estrada que significa afastamento do progresso científico e tecnológico.

Assim, poderíamos indicar esses pontos com autores, propostas recentes, discórdias e concórdias. Não farei isso. Em vez, tenho uma proposta ao leitor. O desafio maior da ética e da bioética no meu entender, nos dias atuais, reside no quase impossível diálogo entre o que se determina nos laboratórios e o vivido na sociedade e no Estado. Se persistem na fidelidade à sua ética, os laboratórios e bibliotecas buscam aperfeiçoar o domínio dos homens sobre si mesmos e sobre a natureza. Saberes cada vez mais amplos e profundos tendem a desafiar a consciência comum dos homens. Esta marca do inédito, do que resulta da pesquisa —quando feita sem mordaças ideológicas ou quaisquer outras mordaças— entra na economia do pensamento, da opinião pública e jurídica de modo a questionar certezas e crenças. Como decidir o correto e o incorreto nos procedimentos, nas trocas entre a comunidade acadêmica e o público? Tragédias foram vividas, desde a Idade média aos nossos tempos, nesta relação tensa entre pesquisadores e a sociedade, em especial a que se organiza políticamente, o Estado.

Aqui, tocamos no ponto mais dolorido das relações entre pesquisadores e o mundo envolvente. Dentre os que alicerçaram a pesquisa científica e a edificação do Estado, existe uma prevenção bem fundamentada nos costumes populares, na chamada opinião pública, sobretudo quando ela se traduz em política. Os teóricos da política, com os cientistas, temem desde longa data a opinião popular.

Um exemplo dessa afirmação é a desconfiança de Maquiavel na ética imperante entre os povos . Ética é o conjunto de atitudes, hábitos, que se tornaram costumeiros e deixaram até mesmo de ser conscientes e foram assumidos como “naturais” e inquestionáveis. Muito do que se disse no século 17 e 18, e até mesmo em nossos dias, sobre o “preconceito” tem esta base. O povo adere às práticas e valores antigos e tende a desconfiar dos novos. Para mudar hábitos arraigados e sólidos é preciso fingir que a sua essência permanece quando medidas para a mudança são implementadas pelos governantes. Se o principe fosse diretamente contra os hábitos populares, dificilmente ele se manteria. Mas se pouco a pouco ele muda as formas e as instituições e muda a ética do povo. Assim, diz Maquiavel: “quem deseja reformar o estado de uma cidade e quer ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita conservar pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora na realidade as novas sejam inteiramente distintas das velhas. Porque a grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são”. (Discorsi, livro I).

Francis Bacon mostra-se atento aos conselhos de Maquiavel. Nos Ensaios, o item Of Innovations afirma : “Seguramente, todo remédio é uma inovação; e quem não aplica novos remédios, deve esperar novos males. Pois o tempo é o maior inovador, e se o tempo certamente altera todas as coisas para pior, a sabedoria e o conselho não as alteram para melhor, qual será o fim? É verdade, o que é posto pelo costume, embora não seja bom, pelo menos se mantem (...) a inovação é coisa turbulenta e quem reverencia muito o passado receia as coisas novas. As inovações dos homens deveriam seguir o próprio tempo, o qual inova muito, mas mansamente, por gráus difíceis de serem percebidos. (...) É também muito bom não experimentar nos Estados, exceto quando a necessidade for urgente, ou a utilidade evidente. E deve-se estar atento, de que é reforma que traz a mudança, e não o desejo de mudança, que pretende tudo reformar. Finalmente, a novidade, embora não deva ser rejeitada, deve ser suspeita. Como diz a Escritura, que contemplemos a antiga estrada, e depois olhemos ao nosso redor, e descobriremos o caminho certo para nele seguir”. O povo deseja novidades mas rejeita as que o coloquem na incerteza de saber quem manda. De um modo ou de outro, a massa tem opiniões que não devem servir como paradigma do governante.

O problema da ética enquanto costume arraigado é dos mais graves dentre os que surgem no âmbito político. Não se muda uma forma de vida, por mais desastrosa que ela seja —quando antiga e aceita como “natural”— de um só golpe. Um povo acostumado a determinadas leis ou a certas maneiras de comando no Estado, encara com desconfiança as inovações no campo dos saberes, dado que se habituou às fórmulas que integram, por assim dizer, a sua alma. Se este é um perigo eminente na recepção das ciências, das técnicas e da filosofia, se isto faz com que renovadores artísticos sejam mal vistos nos inícios de suas carreiras ou de suas propostas, o hábito pode derrubar regimes com inspiração democrática. Examinemos esse ponto num avisado analista dos costumes, Michel de Montaigne. ( 7)

Com o estilo saboroso habitual, o renascentista inicia o capítulo com um exemplo eloquente. “O que seria o costume?” Alguém, diz o filósofo, o definiu muito bem com o símile de uma senhora camponêsa que aprendera a acariciar um bezerrinho entre seus braços. Ela ficou acostumada a fazer isto, mesmo quando o bicho se transformou num grande boi. Esta é uma verdade, fala Montaigne, porque o costume é uma violenta e traiçoeira professora. O costume se abriga em nós pouco a pouco, escondido, e nos impõe sua autoridade. No início ele pode ser suave e doce, e isto nos tranquiliza. Mas no fim mostra um rosto tirânico e furioso, contra o qual sequer temos a liberdade de erguer os olhos. E vemos, assustados, que ele destrói todas as regras da natureza. Vem a seguir uma série de costumes que se tornaram comuns, por mais atrozes que eles tenham sido no início. Antes, entretanto, Montaigne cita Platão e os médicos. Nesta matéria, muitos deixam a arte médica, ou política, em proveito da autoridade costumeira, ética.

Entregues aos costumes e à opinião, muitos cometem desatinos, por hábito adquirido. Um rei que acostumou seu estômago a ingerir veneno, uma rapariga cujo hábito é comer aranhas, alguns povos que ingeriam gafanhotos, formigas, morcêgos, lagartos, sapos. Para certos povos, as carnes européias eram mortais e venenosas. Qual a causa da citação desses costumes estranhos? É porque, afiança Montaigne, o costume torna os nossos sentidos abestalhados (hebetés). O filósofo refere-se aqui ao conceito de sensibilidade mental e corporal trazido dos gregos. Uma pessoa marcada pela ausência de sensibilidade, no termo grego, é anaisthêtos. Quanto mais alguém perde a sensibilidade para os matizes do real, mais está acostumado a ver em preto e branco, menos percebe o mundo como ele é ou pode ser. Mais se aferra ao costume e mais é dele vítima, antes de ser algoz dos outros. O costume faz com que os ouvidos, os olhos, não percebam a natureza e os homens na sua medida própria, mas segundo a régua dos preconceitos. Em certas situações, o costume muda até a percepção. Um soldado se acostuma ao barulho dos canhões enquanto para as demais pessoas ele é insuportável. Um sino que bate todo dia integra a rotina, apesar do seu incômodo para os não acostumados. Platão censurou um menino, porque ele jogava com nozes. Resposta da criança: “tu me censuras por pouca coisa”. Réplica de Platão: “o costume não é pouca coisa” (anedota narrada por Diógenes Laércio).

Os piores costumes, os que definem as piores éticas, nascem no berço. Aqui, Montaigne retoma Platão. Nosso primeiro governo está nas mãos das babás, muito complacentes com nossos instintos agressivos. Mas não apenas elas, pais e mães facilitam péssimos costumes, deixando-os penetrar em nossa alma e corpo. A mãe que assiste, tranquila ou maravilhada, o pimpolho torcer o pescoço de um frango, ferir um cão ou gato, o pai que é tolo o bastante por tomar como futura prova de virilidade quando enxerga seu filho insultar um transeunte ou empregado que não podem se defender, ou quando nota que ele engana com trapaças os seus companheiros, todos esses comportamentos engendram tiranos. Aqueles pais regam as sementes da crueldade e da traição. Com o crescimento das sementes malditas, vem a força dos costumes adquiridos. Pior é quando os pais desculpam violências dizendo que elas são feitas por crianças frágeis e inocentes. É preciso, diz Montaigne ainda seguindo Platão, ensinar as crianças a odiar os vícios de sua própria contextura, ensinar o quanto eles são disformes, para que elas deles fujam, não só do exterior, mas do fundo do coração. Platão dizia que ensinar era tingir almas com a tintura das leis. É preciso que as leis esteja marcadas de modo indelével nas almas. Caso contrário, o respeito da lei será apenas exterior. A lei deve ser gravada no coração dos homens.

A política que se baseia apenas nos costumes é insana. Nenhuma fantasia terrível, arrisca dizer Montaigne, deixa de encontrar exemplos anteriores que a torne possível. Os costumes são relativos e diferem de povo a povo. Mas eles imperam em todos eles. Mesmo as leis da consciência, que dizemos nascer da natureza, brotam dos costumes. Cada um venera internamente as opiniões e mores aprovados e recebidos ao seu redor, e deles não se separa sem remorsos. O principal efeito do costume é nos dominar de tal modo, que ele entra em nós e raciocina em nós as suas ordens. Alimentamos esse domínio desde a infância, quando foram infundidas as suas sementes em nós, por nossos pais. E pensamos tudo aquilo que está fora dos costumes, é estranho à razão. Deus sabe, afiança Montaigne, o quanto isto é desarrazoadamente freqüente. Raros costumes trazem o bem coletivo. É verdade que povos nutridos de liberdade e autonomia, consideram toda outra forma de governo contrária à natureza. Mas os que se acostumaram à monarquia fazem o mesmo. Montaigne chama a atenção para o problema da opinião pública. E cita o texto platônico das Leis. Neste, o grande inimigo da opinião pensa, num paradoxo, que ela pode ser usada para impedir atos contrários à natureza, como o parricidio, a homosexualidade, etc. Yvon Brès, em trabalho sobre a psicologia de Platão, indica bem o quanto o filósofo ateniense foi realista no uso da retórica para persuadir massas. Desde o vinho, recomendado como preparador da persuasão, até o teatro, tudo o que pudesse causar horror ao crime deveria ser utilizado pelos governantes para determinar o rumo da consciência pública. No livro 8 (838 c) das Leis, Platão discute o incesto . No comentário de Yvon Brès: “se cada homem pudesse experimentar diante de todo menino ou menina o mesmo sentimento de retenção que tem diante de um filho, um irmão, uma filha ou irmã, a lei moral se beneficiaria com a força desta `lei não escrita´ que se opõe ao incesto. Ora esta força vem de uma espécie de unanimidade: desde nossa idade mais tenra, vemos a comédia e a tragédia nos representar o comportamento de Tieste, de Édipo e de Macareu como abominável; nós os vemos dando-se a morte quando descobrem e grandeza de sua falta . E Megilos, [personagem das Leis] aprova: sim, a opinião pública tem verdadeiramente uma força extraordinária”.

Explicita Montaigne, ao discutir o mesmo problema a eficácia da receita platônica, segundo a qual as mais belas filhas não atrairiam o amor dos pais, nem os irmãos mais excelentes em beleza, o amor das irmãs. As fábulas mesmas de Tieste, Edipo, Macareu, infundiriam, com o prazer de seu canto, esta crença útil no macio cérebro das crianças. Assim, mudanças dos costumes podem ser saudáveis desde que introduzidas pelos magistrados, com o devido controle. Esta lição platônica é extraída pelo cético Montaigne. A religião cristã, diz ele, tem todas as marcas de extrema utilidade e justiça. Mas nenhuma delas é mais aparente do que a exata recomendação da obediência ao magistrado e a manutenção da ordem pública. Deus não destruiu, para nos salvar, a ordem política. Assim, as inovações devem ser feitas de modo controlado para evitar as opiniões antigas e apaixonadas das massas populares.

Voltemos aos nexos entre laboratórios, campi e opinião pública. Hoje, os problemas mais desafiadores para a pesquisa científica, nas relações com a sociedade organizada politicamente, ocorrem ao redor da fé religiosa, ética, política. No caso dos organismos geneticamente modificados, no Brasil (e no mundo) temos as políticas das grandes corporações que produzem técnicas para gerar novos entes, suposta ou realmente mais rentáveis e mais apropriados para alimentar os bilhões de seres humanos e as leis de Estado. No caso dos OGM constatamos uma parcela ponderável dos pesquisadores que apoia a sua produção, com menores ou maiores cautelas. Mas o que se passa no plano do próprio Estado brasileiro? Este deveria ser soberano e determinar, com leis, práticas sancionadas positiva ou negativamente. Nota-se que os pesquisadores estão divididos entre os que negam a legalização da prática e os que a defendem. Porque agricultores, ao arrepio da lei, plantam sementes geneticamente modificadas em solos nacionais , preocupa muito. Se existem pesquisadores que defendem os novos procedimentos, frutos de intenso e extenso trabalho dos laboratórios, existem setores médicos, econômicos, políticos que a eles se opõem.

O problema grave em tudo isso gira ao redor das normas e dos costumes. E também da prudência. Em última instancia, vivemos hoje neste plano o exato contrário do que preconizou Francis Bacon. A frase célebre de Bacon, “knowledge and power meet in one” parece obsoleta, vista que o universo do saber perde terreno no campo do poder. Só por um prisma os saberes ganham, mas trata-se de uma vitória problemática: eles ganham quando sustentados por poderes não políticos, os poderes das grandes corporações multinacionais.

A passagem entre o que se faz nos laboratórios e o campo das leis está obstruida de modo grave e o fato de que o governo precise renovar medidas provisórias (que se tornam definitivas) mostra bem isso. Ora, não é possivel aos laboratórios trabalhar na incerteza juridica. E para que a legislação fosse adequada para permitir alguma ação com certeza, seria preciso que a lei se produzisse em ambiente que reunisse ao mesmo tempo saberes e opinião pública. Este impasse não se resolve de imediato.

É preciso recordar que a norma legal é monopólio do Estado, ou seja, dos poderes políticos. Não por acaso os novos regulamentos estacionam no Legislativo, lugar onde se encontram muitos representantes ideológicos, religiosos, civís, mas pouquissimos pesquisadores. Leis são elaboradas, para o campo da ciência e tecnologia, segundo critérios alheios ou hostís ao conhecimento científico. Como resolver o impasse? Este, no meu entender, é um dos maiores desafios à reflexão ética.

Em primeiro lugar, porque a universidade e os laboratórios não constituem poderes no sentido estrito da palavra. Nenhum coletivo de cientistas ou de técnicos possui os monopólios da força física, da norma juridica, da taxação do excedente econômico. Tais são as prerrogativas do Estado nas suas três faces, o Legislativo, o Judiciário, o Parlamento. Assim, os cientistas dependem, para a sua própria manutenção, do poder estatal. E mesmo os que são protegidos pelas corporações multinacionais não podem manter seu trabalho em longo prazo, se o seu procedimento colide com o Estado e com a opinião pública. Temos então o conflito mais profundo das éticas, a da opinião ou fé. A democracia determina que no Parlamento e nos demais poderes tenham lugar representantes das mais diversas e contraditórias opiniões, éticas, crenças. Mas o trabalho da ciência repercute na vida de todos. Se os opostos aos avanços científicos têm maioria no legislativo e no executivo, eles não apenas entravam os projetos, mas os impedem. Não falo de irrelevantes fábulas, mas de atos concretos determinados na vida nacional e internacional. Entre os cristãos que recusam aprovar pesquisas com celulas tronco, e o presidente Bush dos EUA existem mais afinidades do que se suspeita. E o poder retorna às mãos dos conservadores, opostos à ciência.

Existem e existiram abusos nas práticas científicas e técnicas com os OGM, com os seres humanos, dos campos nazistas aos nossos dias? A resposta é positiva. O que resultará de positivo para a humanidade se as Constituições e as leis forem efetivadas segundo o padrão exclusive das formas religiosas? O integrismo religioso que condena antes de conhecer e expulsa antes de analisar, torna-se a promessa no Estado, a cada eleição nova. E os laboratórios permanecem silentes e sem comunicação social ampla. Algo deve ser feito, claro. Mas como? O primeiro passo, no meu entender, é reconsiderar o a-politicismo dos cientistas e técnicos. O segundo, é a luta democrática pela mudança da opinião pública, e nesta última a expansão do saber é estratégica. Enquanto a ciência for acessível a minorias sociais, ela estará em perigo.

O terceiro passo a prudência e a medida entram como elementos estratégicos na vida dos campi. Não raro, notamos cientistas e técnicos que tombam nas malhas da midia e perdem a prudência na fala e nos atos, quando se dirigem ao público. Eles olvidam que os sentidos dos demais seres humanos não foram informados com os traços de saber que neles se imprimiram. Alguns cientistas chegam mesmo a penetrar no terreno do show business. Um livro saido tempos atrás na França foi traduzido pela Editora da Unesp a meu pedido. Ele chama-se A Impostura Científica em Dez Lições de Michel de Pracontal. Ao lado dos certeiros ataques de Alan Sokal e Jean Bricmont (Imposturas Intelectuais) aos filósofos pós-modernos que usurpam conceitos e procedimentos das ciências, sem os custos do trabalho disciplinado nos laboratórios, aquele volume desvela um traço a mais da vida científica: o encanto com a midia e com a fala sem peias, baseado apenas no saber científico conquistado anteriormente à transformação própria em “celebridade”. Tais cientistas, ou ex-cientistas prejudicam mais o trabalho interno da ciência do que se pode imaginar.

Finalizo evocando o alerta trazido por Aristóteles no Tratado da Alma: os sentidos permanecem inativos ou são lesados quando ultrapassamos algum limite e medida. A vista não enxerga se a luz é insuficiente e, no inverso, ela enceguece por excesso de luz. É apenas nos limites de certa medida que existe vista e visão. E no dominio ético, da ação, diz a Etica a Eudemo e a Etica a Nicomaco, a virtude é toda ela determinada pela medida. (Cf. Lambros Couloubaritsis, “L´Un comme mesure de toute chose”, in La Mesure, Seminário dirigido e publicado por Jean-claude Beaune. Paris, Champ Vallon, 1994, p. 200).

Essa doutrina foi exposta de modo mais poético na Lógica de Hegel: a luz pura e a pura obscuridade impedem a visão. Apenas na passagem da luz e das sombras reside a visibilidade, bem como na passagem do ser e do nada surge vida. Quem, como os cientistas, trabalham com o fenômeno, o que vem à luz, sabe a importancia dessa medida que afasta as certezas dogmáticas e os saberes estabelecidos, seja pela academia seja pelo suposto “saber popular” que, não raro, é fonte de morte para o próprio povo. A prudência ética exige, diante dos OGM, das experiência com células tronco, com seres animais e humanos, suspender os juízos categóricos e examinar o que se apresenta por todos os ângulos possíveis. Isto leva tempo. Justamente por este motivo, o tempo do pesquisador não pode ser o tempo economico, político, religioso. É o tempo da paciência do conceito.

Roberto Romano
Depto. de Filosofia/Unicamp

Notas

(1)Jornal da Unicamp, edição de 04 a 10 de outubro, 2004.

(2)"Per intuitum intelligo....mentis purae & attentae non dubium conceptum, qui a sola rationis luce nascitur". "Regulae ad Directionem Ingenii." In Descartes, Oeuvres, Adam ,Ch. e Tannery, P. Vrin Ed. Volume X, página 368.

(3) "Regulae" ed. Cit. Página 369.

(4) Wissenschaft der Logik (Werke in zwanzig Bänden, Suhrkamp Verlag, T.I, v. 5, página 96).

(5) Hegel e os Gregos. Tradução Ernildo Stein, São Paulo, Duas Cidades Ed., página 113.

(6) Lembro aqui, de uma bibliografia imensa, apenas o denso e volumoso livro de Elisabeth de Fontenay, Le Silence des Bêtes (Paris, Fayard, 1999).

(7) Ensaios, Livro I, 22 : “Sobre o costume e de não mudar facilmente uma lei recebida”.






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