domingo, 11 de fevereiro de 2007

Sigilo Jornalístico e Segredo de Estado.

Sigilo Jornalístico e Segredo de Estado.

Roberto Romano (1 )

Em nossos dias o segredo de Estado adquire dimensões inauditas. No mesmo passo, a falta de sigilo da vida privada atinge seu ápice. A quebra do sigilo de um caseiro no Brasil, com evidente intento de desmoralização, entra na lógica acima. Quem se levanta contra os donos do poder sofre as consequências, perde os direitos formais que deveriam imperar no Estado de direito. O texto abaixo, fruto de uma conferência para o Ministério Público da Bahia, ataca as tentativas de alguns procuradores da república, no sentido de dissolver o direito jornalístico ao sigilo da fonte. As alegações tendenciosas em favor da medida merecem estudo. Quando escritórios de advocacia são invadidos pela polícia, destruindo o segredo entre cliente e profissional, quando ninguém pode descansar com a certeza de sua privacidade, quando o caseiro mencionado, de vítima se torna réu, é preciso notar que se anuncia a aurora tremenda do totalitarismo. Embora o texto abaixo não seja estritamente de ordem educacional, creio que ele pode servir para a reflexão política brasileira. Começo com uma longa notícia sobre as intenções de procuradores da república, no sentido de abolir —de modo tortuoso fala-se em “atenuar”— o sigilo da fonte entre nós.

“A intenção do procurador do Ministério Público Federal em Brasília Bruno Acioly de quebrar o sigilo telefônico de quatro jornalistas e, com isso, ter acesso às suas fontes de informações foi o tema do dia ontem na rede interna de comunicação do órgão. Os procuradores queriam chegar ao responsável pela divulgação das mensagens eletrônicas em que Acioly pede a ajuda de colegas para reunir subsídios jurídicos para flexibilizar a garantia constitucional e legal dada ao sigilo de fonte. O pedido de Acioly foi noticiado ontem pelo jornal O Estado de S.Paulo. Na troca de mensagens, os procuradores alertam para o fogo amigo entre os colegas e sugerem até um pedido de esclarecimentos ao jornal. Em mensagem do dia 22 de novembro, Acioly lançou sua demanda na rede. ´Resumindo: a questão nevrálgica é saber se podemos ou não quebrar o sigilo telefônico do jornalista quando este se recusa a revelar seu informante, sob o fundamento do sigilo de fonte. Este sigilo é ou não é relativo?´ No mesmo dia, em um outra mensagem eletrônica, o procurador deu aos colegas mais detalhes sobre os motivos para reiterar o pedido de quebra de sigilo, já apresentado anteriormente à Justiça, mas que fora negado. Disse Acioly: "No caso vertente, o que acontecia era o seguinte: informações privilegiadas do governo vazavam para o mercado financeiro através de insiders do Banco Central, conforme matérias publicadas por uma revista semanal, fundada em informações em documentos repassados por um banqueiro que conhecia as engrenagens do ´esquema'”. [Acioly] diz ter fortes razões para crer que a fonte da revista era também parte da suposta organização criminosa que ganhava dinheiro no mercado financeiro com o vazamento de informações do BC. Ele pretendia, com o acesso ao extrato de chamadas dos jornalistas, chegar à pessoa que os teria alimentado com informações. Ontem, ele não quis revelar os nomes dos jornalistas. Alegou sigilo de Justiça. Acioly disse que analisa a divulgação de sua correspondência eletrônica pelo lado positivo, que seria levar à grande imprensa e à sociedade uma questão tão relevante como o sigilo de fonte. Fizemos um pedido [à Justiça] nesse sentido, que foi indeferido. Qualquer passo para abrir sigilo de fonte deve ser muito bem pensado. Fico feliz que a imprensa esteja discutindo isso (…) Minha intenção é trabalhar pela consolidação deste sigilo, não para fragilizá-lo. É fundamental para a imprensa e para a sociedade. Não existe democracia sem sigilo de fonte´, disse Accioly, que diz ter até 7 ou 8´ de dezembro como prazo para apresentar um mandado de segurança visando a quebra do sigilo dos jornalistas. O procurador disse ter lançado mão desta estratégia porque seria um último expediente para avançar em um caso de muitos anos´. Ele confirmou se tratar de uma investigação iniciada em 99. Naquele ano, a revista Veja tornou público o socorro do BC aos bancos Marka e FonteCindam, que quebraram devido à desvalorização cambial. A operação de salvamento, feita com dinheiro público, custou R$ 1,5 bilhão. Integrante do grupo de procuradores que investigou o caso na ocasião, Acioly pediu -e teve negada- a quebra de sigilo telefônico do repórter Policarpo Júnior, responsável por reportagens sobre o caso Marka-FonteCindam publicadas pela Veja.” ( 2)

O mesmo procurador, Bruno Caiado de Acioli (3 ) em artigo na Folha de São Paulo, enuncia a sua tese quanto ao sigilo jornalístico. Após um fervorinho banal sobre a liberdade de imprensa, reconhecido o papel da midia na denúncia de “roubalheiras”, o autor transforma um elogio insofismável, na pena de Tocqueville, em “sutil ambivalência” dos jornais, algo que não teria passado “despercebido pelo Constituinte de 1987 que, ao consagrar a liberdade de imprensa, tratou de fixar-lhe limites no próprio texto constitucional.”. O autor, a seguir, transmuta um mandamento da Constituição ( 4) em senda para, ainda segundo uma lógica estranha, tranformar a mais do que insofismável segurança do sigilo da fonte em base para a sua “flexibilização”. Proclama o autor uma verdade acaciana e arcaica: o caráter sistemático das garantias democráticas, que no Estado de direito devem se harmonizar: “a liberdade de manifestação de pensamento, o direito à informação e o sigilo de fonte estão intimamente ligados. Conseqüência disso é que não haverá que se falar em manutenção do sigilo de fonte todas as vezes em que esse for prescindível ao exercício profissional ou sempre que o indigitado sigilo deixar de atender a sua função social, a saber: garantir o acesso de todos à informação e à liberdade de manifestação de pensamento.”. Soberano, dizia um jurista importante no mundo totalitário, é quem decide sobre o estado de exceção. Perguntemos : quem decide, como decide, por que alguém decide ser a quebra do sigilo prescindível “ao exercício profissional”? E quem decide que o “indigitado” sigilo perdeu a sua função social? O procurador e o juiz? Excelente. Ficamos sabendo, assim, que existem seres superiores aos demais cidadãos e que decidem soberanamente sobre a suspensão de direitos (sim, porque o sigilo não é algo simples, implicando uma série complexa de direitos que o sustenta), sem apelo.

E quais os motivos para retirar o direito do sigilo, uma garantia que não é da imprensa, mas dos cidadãos? O sigilo da fonte, diz o procurador, “não pode ser concebido como manto acobertador de atividades criminosas, sob pena de desvirtuamento.”. Na ditadura militar o mesmo sigilo foi acusado de acobertar “criminosos”, os subversivos e os corruptos. A ditadura passou, com os seus censores, mas deixou rastros indeléveis de ilegalidade, enquanto os corruptos permaneceram, os subversivos tornaram-se presidentes, senadores, deputados. Segue-se, no texto em pauta, uma fieira de frases tremendas, as quais beiram ao escárnio diante dos valores éticos : “inexistem direito ou garantia absolutos. Nem mesmo o direito à vida é ilimitado, haja vista a possibilidade de aplicação da pena de morte na hipótese de guerra.”. O direito à vida é ilimitado. Quem nega esse ponto abre as portas para todos as violações resultantes, nos campos de concentração da Alemanha nazista, no Gulag ou nos campos de futebol do Chile. Passando, claro, pelas masmorras brasileiras onde o assassinato e a tortura fizeram seu trabalho horrendo. Vladimir Herzog é prova da dignidade da imprensa e sofreu todo o desprezo pela vida que permeou os anos ditatoriais. Uma guerra é fato tremendo, lamentado pelos grandes espíritos da Humanidade, desde Empédocles de Agrigento a Erasmo de Rotterdam, de Einstein a Gandhi e demais fontes de luz moral. Se o fato bélico é inegável (no século 20 a guerra conduziu mais de 500 milhões de pessoas à morte) ele não se caracteriza ainda, graças aos céus, como integrante do nosso cotidiano. Salvo as guerras civis que arrasam alguns países, ele não marca a normalidade do Brasil. Apelar para a guerra como justificativa para suspender direitos, quando não existe guerra, é antecipar algo sinistro. Afirmar que “no estado de guerra” torna-se permitido suspender o sigilo da imprensa é antecipar algo que ainda não existe. E que todos nós, cidadãos, pedimos afastar de nossa pátria. Embora tenha horror da ditadura Vargas, permito-me recordar os belos versos musicados por Villa Lobos: “Ó divino onipotente, permiti que a nossa terra, viva em paz alegremente, afastai o horror da guerra!”.

O hino do procurador, num crescendo sinistro, entoa a salmodia do estado de exceção, previsível num texto cuja premissa determina que direitos podem ser suspensos pelos que decidem : “A terceira limitação concerne à relatividade do sigilo de fonte em caso de Estado de Sítio, quando então se atribui ao presidente da República poderes para restringir a liberdade de imprensa e, conseqüentemente, o sigilo de fonte.” A defesa da exceção em detrimento da norma caracteriza um pensamento jurídico peculiar. Trata-se dos que pretendem obter a tutela da cidadania, outorgando a si mesmos o título de protetores da Constituição. Os resultados dessa leitura jurídica não são brilhantes, levando-se em conta a ética e a defesa da Humanidade. Os piores atentados aos direitos surgem das situações emergenciais impostas à sociedade pelos que se julgam capazes de decidir se alguns direitos devem ser respeitados, ou não. Como no artigo 48 da Constituição de Weimar: "Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich debe tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, e 153." Os resultados são conhecidos pelos que analisam a história.

Os exemplos dados pelo procurador para defender sua causa são infelizes: o nosso país não possui pena de morte, não está em guerra civil ou com outros países, não vive em condições de estado de sítio. Não vivemos em estado de exceção. Por isso mesmo, não precisamos de censores ou curadores dos nossos direitos. Por mais sublime que seja a missão do MP, ele não tem nenhum direito de se imaginar curador da república e propor suspensões de direitos para facilitar o seu trabalho. Direitos não podem ser suspensos para remediar limitações operacionais do MP, dos juízes e demais setores. É por tal motivo que, em plano conexo, as invasões aos escritórios de advocacia e outros abusos, cometidos em nome do “combate ao crime”, abrem o caminho para atos insuportáveis, destruidores do frágil Estado de direito em nossa terra. Juízes, promotores, advogados devem ser igualmente vistos como os pilares da Justiça. Se os advogados são despossuídos do sigilo profissional, todo o sistema perece. O mesmo diga-se da imprensa. Alguns membros do Ministério Público, como os militares antes de 1964, julgam-se os únicos incorruptíveis, oniscientes e capazes de resolver os males da corrupção imperante. Este erro deriva do orgulho, traço que pode conduzir os melhores —desde Lucifer— ao pior. ( 5)

Quando os críticos indicam apenas o pior no Estado, colaboram com a tirania: a multidão desmoralizada tende para a passividade e aceita qualquer político, visto que “todos são farinha do mesmo saco”. É preciso cautela cívica contra os que se pretendem puros e apontam os dedos para os demais partícipes da vida oficial, mostrando apenas sujeiras. Tal angelismo é apenas artifício. Elias Canetti tem boas reflexões sobre este exercício nojento e eu as citei no artigo em questão. E hoje ? As Comissões Parlamentares de Inquérito, meios para destituir os que estavam no poder (“Fora FHC”) agora são abafadas ou ridicularizadas pelos que ontem as exigiam.

O Ministério Público gera frutos preciosos para a democracia no Brasil. Com ele, crimes e práticas contrárias à coisa pública são denunciados e postos sob a vista da cidadania. Se os criminosos não recebem castigo exemplar, a culpa não é dos promotores, pois a sua maioria cumpre o que deles se espera – com o risco de sua própria vida. A vida nacional será pior caso o poder de investigação seja negado ao MP. Os corruptos, os que lesam os direitos humanos e os que matam sem pena, os improbos na sua generalidade serão vitoriosos. É por esse motivo que apoio vigorosamente o movimento em prol do MP. Todos os que ainda confiam na república devem cerrar fileiras na defesa do promotores. Eles constituem uma das poucas esperanças de vida civilizada em nossa terra. (6 )

A idéia de providenciar meios para que o sigilo da fonte seja “flexibilizado” tendo em vista a salvação pública, pode trazer novos embaraços para o trato entre Ministério Público e imprensa. Digo isto com propósito pois o exemplo fornecido pelo mesmo funcionário, agora em outro jornal ( 7) afirma que se alguém insere veneno em águas públicas, é preciso quebrar o sigilo da fonte. Este caso permite-nos a aproximação ao problema do segredo em nossos dias. Em primeiro plano, não se trata de problema nacional apenas. O segredo jornalístico está na ordem do dia em todo o mundo, de maneira diversa mas constante. (8 ) Em 07/11/2005 o movimento Reporteres sem Fronteiras denunciou o pagamento de 500 dólares diários, aplicado pelo Tribunal Federal de Apelação em 03/11/2005, na Columbia (EUA) contra 4 jornalistas, por terem eles se negado a revelar fontes. O sigilo, diz nota do movimento indicado “é fundamento da profissão jornalística”. Os 4 jornalistas citados cobriram o caso Wen Ho Lee (cientista acusado de espionagem). Como os promotores não conseguiram a condenação do pesquisador, este processa o governo norte-americano por espalhar boatos contra ele. Interrogados pelos defensores de Lee, os jornalistas deram informações mas se recusaram a nomear as fontes, invocaram a Primeira Emenda da Constituição. Eles receberam 30 dias para mudar de idéia junto ao Tribunal.

Sem o sigilo das fontes é quase impossível alguém colaborar com a imprensa em casos graves de corrupção, segurança pública, economia, etc. Reporteres sem Fronteiras afirma, em seu comunicado, que os jornalistas são profissionais da midia e não serventes da Justiça : “Ao proteger a identidade de sua fontes, eles protegem o direito de vistas da sociedade nos assuntos públicos (…) é espantoso ver que este princípio é melhor aceito em 31 Estados da federação do que em Washington, pois neles as chamadas leis escudos (shield laws) o protegem, mas não em nível federal.” Note-se que o processo de Lee não é contra os jornalistas, mas acusa os Ministérios da Justiça e da Energia nos EUA, porque eles teriam fornecido à imprensa informações sobre ele, designando-o como possível espião. O juiz decidiu que Lee tem o direito de saber quem, na administração, tinha originado os boatos que o haviam definido daquele modo, como espião, junto ao público norte-americano.

O processo Lee, como os demais ocorridos recentemente nos EUA, recolhe vários aspectos do poder estatal com seus ditames, a vida privada, a liberdade e a honra dos indivíduos. Nos próximos instantes apontarei alguns traços históricos e éticos para que possamos pensar este complexo axiológico de modo um pouco menos ambigüo do que se faz comumente. Não tenho a pretensão de ser exato ou absolutamente verdadeiro, quero pensar um pouco, num mundo onde a palavra de ordem é não pensar. Comecemos com o fato de que o processo Lee envolve um cientista que antes trabalhava para laboratórios que prestavam serviços ao governo. E o que é um cientista?

Ele é um ser humano cujo saber exige os cinco sentidos, em especial a vista. Desde a era grega, o conhecimento se afirma com a vista e ao mesmo tempo dela desconfia. Os olhos penetram os infinitos aspectos do cosmos e ultrapassam os espaços, recolhem o tempo e possibilitam, com a ciência dos números e da geometria, a base para o conhecimento. A teoria, exercício do olhar inteligente, surge na raiz da pesquisa e de sua comunicação. Tudo, para o cientista, pode ser alvo de busca, mas na marcha do conhecimento existem níveis, tanto no objeto procurado, quanto no modo de o adquirir. (9 ). O sábio sintetiza os elementos da pesquisa. Ele é um "sinótico" ( 10) capaz de ver o todo, e não apenas as parcelas da investigação. A theoria grega e o intuitus latino, significam correto golpe de vista. Intuitus, ato de olhar, se apresenta na idéia da mente como espelho, intuitio sendo a imagem, o refletido. Speculator, o pesquisador que observa, é nomeado com o mesmo vocábulo que indica o "espião". Intueor marca o olhar atento que tudo penetra. Palavras nunca são inocentes. Pesquisar e espionar, desde os primórdios da ciência, definem o campo da política e a força de um Estado para se impôr ou sobreviver aos ataques dos demais. Este primeiro elemento nos faz desconfiar se Lee era apenas um cidadão comum e se na sua profissão ele não praticava o segredo que seus advogados recusam aos jornalistas com patrocinio do juiz que decretou serem “desrespeitosos” os jornalistas que recusam indicar a fontes.

Lee trabalhava, direta ou indiretamente, para o Estado, a grande fonte moderna de segredo. O Estado atual que, no mundo inteiro, através de explícitas violências contra o direito público, exacerba o seu próprio segredo, mas também o de grupos econômicos. Nos EUA, mesmo no período Clinton, um elemento da política econômica governamental decidiu-se pela ampliação da espionagem em auxilio das corporações estadunidenses. Mas esse não é um fato peculiar aos EUA: na França, ( 11) não apenas o governo aumenta segredos, como empresários de todos os setores, incluindo naturalmente o bancário, lutam com a arma poderosa do sigilo na guerra de todos contra todos. A situação na Alemanha, (12 ) na Itália, no Japão e na China repetem a liturgia do segredo. Todo Estado prevê o crescimento técnico interno e busca saberes externos para aumentar seu acúmulo de conhecimentos úteis para manter e prolongar a vida dos cidadãos. Caso o acesso aos referidos dados sejam subtraídos a certos países, por dolo ou explícito ato de guerra, o recurso técnico mais antigo é a espionagem. Nesse plano, a dissimulação opera com destreza: o fingimento oficial condena a espionagem, mas dela não prescinde. O mesmo se passa no setor supostamente privado das grandes corporações ligadas aos serviços secretos que beneficiam pequenos grupos humanos em detrimento do maior número. Não é irrelevante recordar que o segredo e a sua quebra tortuosa, a espionagem, foram vividos antes pelas corporações medievais e só depois postos a serviço dos Estados renascentistas.


A imprensa serviu para atenuar o segredo de Estado e os demais sigilos (da vida privada à religiosa, sem deixar de lado a economia). Ela, no entanto, insere-se num complexo de interesses que a tornam constantemente atriz e vítima dos poderes naquelas várias esferas. Diria que todos aqueles setores percebem na imprensa uma aliada, quando não instrumento, se o problema é divulgar e propagar os seus intentos, procurando identificá-los ao “interesse geral”. Ela é bem vinda naquela cirscunstância. Empresas e indústrias, bancos e cúpulas eclesiásticas, gabinetes políticos ou militares, partidos e seitas, todos cortejam a imprensa na busca de popularizar a sua “mensagem”, obter lucros e favores de governos, ameaçar concorrentes. E todos a criticam acerbamente quando não conseguem efetivar, por seu intermédio, aqueles fins.

A história da imprensa moderna, sobretudo no campo do século 18 para cá, especialmente na política, é a crônica do perene choque contra o segredo, em especial o de Estado. Para conseguir leitores, os jornais que traziam notícias políticas ofereciam informes sobre projetos governamentais (economia, comércio, militares), estatísticas, orçamentos dos países sobre a potência militar, taxas de nascimentos e mortes, importação e exportação. Trata-se de apaziguar, como diz um historiador da imprensa, a fome generalizada de informação. Mas existia mais, neste afâ estatítico “Ele era um ato deliberado, politico, com ele se pretendia desvelar o segredo com o qual os governos absolutistas se envolviam, para gerar as bases de um debate público”.

Pode-se dizer que o problema do sigilo das fontes, no jornalismo, é o lado oposto e contraditório com o segredo de Estado. Quem deseja a democracia e quer impôr aos jornalistas o abandono do sigilo, ou ignora os principios democráticos ou mente com dolo para instaurar regimes inimigos do Estado democrático. Quanto mais cresce o segredo de Estado que protege governos contra os cidadãos, mais beneficiados os oligopólios econômicos, militares, religiosos. Mais poderosos os grupos referidos, eles exigem maior segredo de seus cientistas e funcionários. Alguns chegam a dominar tribunais, deles esperando segredos de justiça que arrancam direitos coletivos e individuais. Se pensarmos que os promotores públicos têm a missão de impedir segredos de Estado ou de particulares, pois eles prejudicam a sociedade, é paradoxal, para não dizer mais, que promotores julguem necessário atingir o sigilo das fontes. Comecei estas considerações com a lembrança do promotor brasileiro que propõe flexibilizar o sigilo e que cita o caso do envenenamento das águas. Mas o sigilo é um remédio contra abusos que, sem o trabalho da imprensa, permaneceriam escondidos para todo o coletivo humano. Não faz sentido impôr tais limites ao jornalista, tanto quanto não faz sentido diminuir o sigilo que rege os nexos entre os advogados e os reus, sob pretexto de que certos defensores se acumpliciam com os fora da lei. Nesses campos, os limites são tênues quando se trata de defender o direito, largos quando se trata de proteger poderosos agrupados ou individualmente. “Veneno”, eu diria a quem propõe semelhante controle de advogados e jornalistas, diz-se em grego com a palavra Pharmakon, que também significa “remédio”. Tudo é questão prudencial de saberes que definem a dose. A ninguém parece correto arrancar dos médicos o auto-crontrole da dosagem. Se algum promotor julga irrelevante o segredo de jornalistas e de advogados, recordo que os poderosos estatais e particulares, na economia e na guerra, desejam mais, além do fim do sigilo da imprensa e dos causídicos. Eles, para manter os seus segredos exigem a mordaça para os promotores e juizes. Ceder-lhes o final do sigilo jornalistico é lhes abrir as portas de um poder sem limites. Se o Ministério Público ajudar a destruir tal prerrogativa, ele não mais poderá exigir as suas, as quais, diga-se para finalizar, operam na árdua tarefa de combater os segredos de Estado, os segredos das corporações, os segredos de todos os que tripudiam sobre os direitos individuais ou coletivos.

Roberto Romano
Titular de Ética, Unicamp.

(1) Roberto Romano, professor Titular de Ética e Filosofia Política/Unicamp. Texto modificado de uma palestra dada em Salvador ao Ministério Público da Bahia, no segundo semestre de 2005.
(2) Folha de São Paulo, 01/12/2005.

(3) “O sigilo de fonte pode ser relativizado? Sim, os limites do segredo” (Tendencias e Debates, 03/12/2005).
(4) "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição" (Artigo 220).
(5) Cf. Roberto Romano, “Os laços do Orgulho”, Editado em forma impressa e na internet na seguinte página da Universidade Montes Claros (texto integral) : http://www.unimontes.br/unimontescientifica/revistas/revista_v6_n1.htm
(6) No mesmo sentido, cf. Roberto Romano, “A igualdade. Considerações Críticas”. Revista Brasileira de Direito Constitucional (número 2, Jul/Dez. 2003), páginas 29-49. Este último texto também é disponível na Internet, no site italiano dedicado à filosofia de Spinoza: http://www.fogliospinoziano.it/articoli.htm

(7) Cf. Roberto Romano: “Vida longa ao Ministério Público” (Correio Popular de Campinas - Opinião - 13/7/2004).
(8) O Estado de São Paulo, 27/11/2005.

(9) Importante documento é fornecido na Belgica pela Fundação Rei Balduino intitulado Presse e Justice, un Guide pour journalistes. Ele afirma que “ Se imprensa e justiça são os dois pilares da democracia, eles mantêm há muitos anos relações tensas, as vezes violentas. Ambas também foram criticadas. Na Justiça, é em especial a falta de transparência, de humanidade, de eficácia o que mais se objeta contra ela, sobretudo pela midia. A imprensa e sobretudo as técnicas de trabalho do jornalismo judicial, foram criticadas com apoio da Justiça. O núcleo do debate encontra-se no problema dos meios de informação aos quais podem recorrer legitimamente os jornalistas no labor investigativo, os quais encontram limites e constrangimentos. Enquanto a midia invoca a liberdade de expressão, o direiro à informação e o segredo das fontes, nos limites fixados pelas regras deontológicas e do direito, a justiça lhe recorda muitas vezes, sobretudo no campo civil, que ela deve respeitar a vida privada, o direito de defesa, o segredo judiciário, a presunção de inocência. A partir dai, o destino dos jornalistas que operam no setor tem sido levar em conta toda uma serie de sensibilidades especificas. Sensibilidade dos acusados, postos a nu diante do público. Sensibilidade dos policiais e dos juizes, ciumentos da eficácia de seu trabalho e também de sua autoridade. Sensibilidade do público que possui direito a ser informado corrretamente. Sem esquecer a sensibilidade dos políticos e dos especialistas da ética, que analisam atentamente tudo o que lhes parece na midia sobre a pequena delinquencia e os ´negócios´, seja pela simplicações eleitorais potenciais, seja pela incidência sobre a democracia em geral.” Cf. http://www.presse-justice.be/home.php


(10) Cf. Jos C.N. Raadschelders : “Woodrow Wilson on Public Office as a Public Trust” No endereço eletrônico : bush.tamu.edu/pubman/papers/2002/raadschelder.pdf


(11) Dean, John W.: “Worse than Watergate”, The New York Times, 02/05/04. “…a presidência Bush-Cheney é claramente nixoniana e apenas no que diz respeito ao segredo ela é pior (…). Dick Cheney, que dirige suas próprias operações governamentais secretas declara abertamente pretender que o relógio volte para antes de Watergate, tempo de uma presidência imperial, extra-constitucional e inconfiável (unaccountable). Declarar a sua presidência secreta como anti-democrática é pouco.(…)Woodrow Wilson, com base em seu longo estudo sobre a arte de governar, conclui o que todo mundo sabe, ou seja, que a corrução vigora nos lugares secretos e foge dos públicos. Acreditamos justo o enunciado que afirma o secredo enquanto sinônimo de impropriedade”. Sejam quais forem os juízos sobre o autor, ele indica um ponto que merece atenção.

(12) Gerhard Schuck, Rheinbundpatriotismus und politische Öffentlichkeit zwischen Aufklärung und Frühliberalismus. Kontinuitätsdenken und Diskontinuitätserfahrung in den Staatsrechts- und Verfassungsdebatten der Rheinbundpublizistik (Stuttgart, 1994), pp. 55–63. Citado por Barker, H.: Press, Politics and the public Sphere in Europe and North American 1760-1820. (Cambridge, University Press, 2002), página 74.

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