domingo, 11 de fevereiro de 2007

SACRIFÍCIO DO INTELECTO







“ ´Quando os homens aceitaram opiniões falsas e as registraram autênticamente em seus espíritos, é tão impossível lhes falar inteligivelmente quanto escrever de modo lisível numa folha de papel já rabiscada´. Nada mais justo do que esta observação de Hobbes” . (A. L. C. Destutt-Tracy. Éléments d'idéologie).




ASSISão Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003


TENDÊNCIAS/DEBATES

Sacrifício do intelecto

ROBERTO ROMANO

As zumbaias que parte dos setores universitários entoa para o governo federal, o silêncio diante da truculência nos cortes no setor de educação e de ciência e tecnologia, os acordos travestidos de "negociações políticas" que cooptam muitos intelectuais lembram os ritos que impeliram pessoas brilhantes como Martin Heidegger ao louvor do autoritarismo.

As verbas são parcas e o verbo livre torna-se mercadoria rara e caríssima, paga com a segregação e o anátema. "Não há sacrifício do intelecto que satisfaça às insaciáveis exigências da falta de espírito" (Theodor W. Adorno). Estas frases ecoam as advertências de Max Weber sobre a ciência enquanto vocação, texto que deveria ser obrigatório nas universidades brasileiras.

O sacrifício do intelecto é exigido pelas igrejas e partidos políticos, mas também molda as seitas universitárias. O lado ritual da coisa surgiu no passado remoto, pois os deuses têm fome de corpos humanos, sobretudo da caixa onde se aloja o cérebro. Mas a exigência de abandonar idéias em função de cargos estatais, ministérios eclesiásticos, prestígio acadêmico é recente. Ela vem com o nascimento de refinadas burocracias, a secular e a espiritual. Nelas se concentraram nos dirigentes o poder de exigir que dogmas sejam impostos e assumidos pelos subordinados. A regra de ouro para a seleção dos funcionários encontra-se na submissão aos preceitos verticais do mando.

Veleidades de autonomia noética trazem anátemas, silêncios, solidões. Espinosa conhecia tal prisma ao recusar a cátedra de Heildelberg. O príncipe pediu-lhe "apenas" o sacrifício de não incomodar as verdades religiosas. "Desconheço limites para a minha liberdade de pensar." Agraciado com os vitupérios de políticos e de reverendos, o pensador escreveu a mais rigorosa ética moderna.

Antes da Revolução Francesa, a igreja exigiu de seus pensadores a plena alienação intelectual. No século 18, o papa Clemente 13, temendo o laicismo e o pensamento ateu, redigiu a encíclica "Quantopere Dominus Jesus", dizendo aos fiéis que a fome da verdade é natural, mas que o espírito santo deseja que ela seja refreada. E ordenou o pontífice que as pesquisas fossem até os limites permitidos pela autoridade religiosa.


Graças às críticas do cardeal Passionei, o documento não foi publicado. O mundo católico ainda não era refém da burocracia curial. Mas logo vieram a "Quanta Cura" e o "Syllabus", que proibiram o pensamento autônomo e denunciaram a "liberdade de perdição". Para fugir daqueles pecados, só o sacrifício do intelecto. Estavam prontas as bases para o reinado do cardeal Ratzinger e de João Paulo 2º.

No Estado, desde o Termidor, passando pela censura napoleônica e chegando ao totalitarismo do século 20, a norma foi a renúncia ao intelecto pessoal. E surgiu a cultura dos militantes com a sua lógica ensandecida. Tal imposição une-se à exigência do silêncio obsequioso. Immanuel Kant sofreu a censura e, segundo Domenico Losurdo, internalizou-a. Ao contrário de Espinosa, o "chinês de Konigsberg" valorizava a cátedra e já estava imbuído do espírito burocrático universitário. Liberdade, para ele, apenas fora do mundo oficial.

Lyssenko foi um caso espetacular de sacrifício do intelecto somado ao silêncio obsequioso dos cientistas soviéticos e ocidentais que ajudaram Stálin. Sem os dois elementos, muito certamente a política socialista conheceria outros rumos. Mas a tolice do governante foi aplaudida pelos acadêmicos, o que os tornou mais culpados do que o próprio autocrata.

No Brasil, a crítica recebe veto perene. A tradição oficialista ordena que as espinhas se curvem, sempre que um novo inquilino se instala no poder. A crítica e a oposição constituem mau gosto e devem ser banidas dos campi e dos laboratórios. Quando Fernando Henrique presidia o país, escrevi, nesta coluna, um artigo intitulado "O PT e a dignidade da oposição". Nele, criticava autoridades que ironizavam aquele partido. Hoje, noto que a mente dos que ocupam o poder é a mesma. A forma é petista, mas o conteúdo tem o sabor do oficialismo. Na época, a imprensa e os intelectuais eram valiosos para o PT. Hoje, com verbas imensas e Duda Mendonça, quem no governo precisa de crítica?

Apagar o que se produziu é o primeiro passo para a boa acolhida entre os cortesãos. E pobre de quem ergue a espinha e a face! Enquanto essa mentalidade imperar entre políticos e universitários brasileiros, vários Lyssenko serão paridos entre nós.

Pensamento e ciência são riquezas que não podem ser alienadas, por mais sublime que seja a "causa" alegada. O respeito pela diferença integra a democracia. Quem recusa esse ponto, adestra-se para aceitar com louvores os piores golpes contra os cidadãos. Silêncios obsequiosos e sacrifício do intelecto geram apenas servilismos, como assistimos em nosso país desde o século 16.

Roberto Romano é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A Monstruosidade no Século XVIII" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.

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Este espaço é uma tentativa de colocar à disposição de pessoas interessadas alguns textos teóricos, certas observações críticas, análises minhas e de outros.

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