quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Raison d´État em Maquiavel e Spinoza.

Apresento abaixo uma outra versão do texto sobre Razão de Estado. Como trata-se de um trabalho em andamento, cada uma das versões traz algo novo, somado a materiais antigos. No caso de Spinoza e Raison d´État, a questão é polêmica. Aceito, no entanto, as propostas de Christian Lazzeri, para quem se é verdade não se encontrar indicação explícita do problema nos textos do filósofo, naõ deixa de ser verdadeira a tese de que neles a questão integra o próprio nervo dos argumentos. Leia-se: "Spinoza et le problème de la raison d´État" in Zarka, Y.Charles: Raison et déraison d´État (PUF, Paris, 1994), página 369 e seguintes. Um debate aproximado a este encontra-se no site Foglio Spinoziano. Naquele lugar publiquei o artigo "A igualdade. Considerações críticas".


Razão de Estado em Maquiavel e Spinoza.

Roberto Romano/Unicamp

Um aspecto relevante de qualquer estudo político em nosso tempo encontra-se na razão de Estado. Toda a agenda do terrorismo estatal ou de grupos anônimos passa pelos temas tradicionais do segredo, da ação que se põe acima ou ao lado das leis comuns, dos alvos só definidos pelos governantes ou líderes políticos, e que permanecem longe da vista dos governados. Para bem definir a razão de Estado é de bom alvitre examinarmos a idéia oposta à ela, a noção democrática da transparência. Em O Caldeirão de Medéia (1) apresento um capítulo inteiro sobre aquela realidade. Mostro alí algumas dificuldades do regime político, democrático no qual os atos e pensamentos dos governantes seriam visíveis para os cidadãos. A idéia do século 18 sobre o poder transparente é uma esperança, sempre renovada e desmentida, dos movimentos que pretendem instaurar a justiça e o respeito aos indivíduos e grupos no mundo de hoje. À visibilidade do mando estatal, sempre foi oposta à razão de Estado, cujos defensores elogiam o segredo dos mecanismos políticos como salvaguarda de qualquer comunhão política, democrática ou aristocrática, monárquica ou tirânica.

O segredo é o mais importante componente do controle político. Elias Canetti, em Massa e Poder, apresenta considerações lúcidas sobre este ponto. Jean-Pierre Chrétien Gony, num estudo sobre o assunto também o discute em minúcia. (2) É um paradoxo que a política, por excelência o campo do que deve ser público, aberto aos sentidos de todos, tenha se encaminhado, sobretudo após o século 16 e 17, rumo ao secreto e ali se aninhe até os nossos dias. O segredo passa a ser algo que todo político deve usar e seu conhecimento vem da frequentação dos poderosos somada à leitura dos grandes teóricos dos Arcana imperii, sobretudo Tácito, Tibério, Maquiavel. Afiança Goni que o segredo une-se ao elogio da mentira e da duplicidade. A partir da caricatura de Maquiavel, o chamado “maquiavelismo” (3) tudo deixa de ser sagrado, inclusive a religião. Como diz um autor citado por Goni, “nada ajuda mais os negócios de um principe do que a crença de sua união com Deus”. (4) A verdade do Estado torna-se mentira para o cidadão, o que ajuda a separar de modo radical o soberano e os súditos. O segredo surge neste intervalo. Goni cita um psicanalista contemporâneo que analisa a própria etimologia do termo “segredo”, que viria do latim secernere, separar, dividir, afastar. (5) A ruptura na sociedade moderna, com a instauração do Estado, abre o campo para o exercicio separado do poder, longe dos olhos e demais sentidos comuns. A tese assumida a seguir por Goni, a da paranóia do governante, extraída de Theodor Adorno (tanto nas Minima Moralia quanto na Dialética das Luzes), merece um exame apurado. Ao discutir esse problema, também apresentei algumas reflexões que, penso, devem ser discutidas. (6) A idéia principal é a seguinte: tendo sido o poder, na era da razão de Estado, concentrado na pessoa do principe, as ameaças que o poder antigo resolvia, exorcizava, afastava, controlava, voltam-se contra o novo soberano. O segredo é o modo de proteger, simbolica ou realmente, o paranóico que assume o lugar central do mando. Todos tornam-se seus inimigos e são perigosos para o Estado. Este é um modo terrível de se entender o famoso L´État c´est moi, com a noção de lesa majestade. Tintas religiosas nessa experiência trazem a marca do Cristo, quando surge após a ressurreição: Noli me tangere. A pessoa real é intocável sobretudo quando se trata de revoltas e rebeliões, possíveis assassinatos dos dirigentes.

A moral do governante, a partir da ruptura trazida pelo segredo, não é uma anti-moral, mas uma outra moral. Esta distinção feita por Goni é relevante. A atuação do príncipe não pode abolir a moral comum. Esta é estratégica até mesmo para que opere a “outra moral”. Ocorre uma assimetria, ou uma oposição múltipla entre as duas morais. Mas nunca abolição da primeira, a do povo comum. A teoria do golpe de Estado é o grande exemplo. Nele, nem tudo é abolido na vida politica habitual, mas invertido. Um indivíduo ou grupo que pensava dar o golpe, o recebe, enquanto outro, que se julgava em segurança porque providenciara a insegurança de seus concorrentes, morre. Na frase de Naudé, “tudo no golpe de Estado se faz noite, no obscuro, entre brumas e trevas”. Goni aponta um lado especialmente grave nessas frases: no golpe, como nas missas satânicas, não é abolida a canônica religiosa ortodoxa. Ela é invertida. Entre a moral comum e a dos poderosos há uma inversão diabólica, mas a primeira não some. A distância entre ambas, no entanto, é incomensurável. E a distância marca a emergência do segredo. O governante deve saber e ouvir tudo. O governado deve ignorar quase tudo na vida estatal.

Num texto atribuido ao cardeal Mazarino, mas de autoria incerta, o grande assunto é o do segredo. Refiro-me ao livro Breviarium Politicorum secundum Rubricas Mazarinicas, publicado em 1684. (7) Alí, o culto do segredo atinge uma altura que tende a se confirmar, ampliada mais fortemente, nos tempos modernos. Nas observações de Macchia, apresentador italiano do texto : “Se a razão de Estado significa razão de domínio, aquele termo pode também aludir (...) a uma ´profunda, intima e secreta lei ou privilégio dado à contemplação da segurança naquela senhoria, à qual Tacito deu o nome de arcana imperii”.

O segredo é a alma da razão de Estado. O estadista gostaria de ser o único a dele gozar. Se pode ler porque foi alfabetizado, o mais cômodo para o poderoso seria que todos os cidadãos fossem analfabetos. O ideal do rei erudito é simultâneo à idéia de razão de Estado. Vigora antes, em boa parcela dos governantes da Idade Média a noção de que as letra são incompatíveis com o mando secular . No século 12, Salisbury defende a ilustração dos príncipes, mas o rei romano Conrado 3 lhe responde: “rex litteratus est quasi asinus coronatus”. Mesmo assim, pode-se ler, numa obra prima da política medieval, a tese que só floresce após os tratados sobre o “espelho dos príncipes” : Rex illiteratus est quasi asinus coronatus (Policraticus, Livro IV, Cap. VI). A passagem recolhida por E. Curtius (8) indica a mutação estratégica na imagem do príncipe, ocorrida com a Renascença. A partir daquele período, toda uma arte de redigir e de ler documentos secretos, a qual utiliza desde símbolos até a linguagem cifrada em termos semiológicos, conduz a afastar dos olhos cidadãos o que se passa no intimo dos palácios governamentais. Do mesmo modo, também se desenvolveu a técnica que permite decifrar documentos secretos, redigidos pelos cidadãos que podem se insurgir contra os poderosos ou de outros dirigentes de Estado, amigos ou inimigos. Hobbes utiliza uma imagem eloquente para descrever esta situação: “os espiões são como os raios de luz para a alma humana, no discernimento dos objetos visíveis”. Eles formam delicadas redes que unem pele e olhos e permitem aos reis inimigos dirigir-se rápida e certeiramente para seus limites extremos, na tarefa que consiste em devorar os assaltantes da teia republicana. Reis aranha têm o direito e a obrigação de digerir inimigos externos ou internos. (9)

Nos artifícios utilizados para decifrar ou esconder os intentos governamentais, recebem destaque os trabalhos encomendados pelo Imperador Maximiliano de Absburgo a de João de Trittenheim, sobretudo o livro Polygraphia, cum clave seu enunclatorio (1518). Nele, se define um método e exemplos de escrita secreta para uso de reis e ministros. Interessante é a técnica de revelar escondendo ou de esconder revelando. A escrita secreta tem uma face que pode ser entendida por qualquer leitor. Mas apenas quem possui a chave de leitura pode atingir o seu enunciado real. A técnica se parece muito às utilizadas em pintura, sobretudo na anamorfose, algo muito importante a partir do século 16. O político, no entender dos estadistas, durante os séculos 16 e 17, deve agir sempre nos limites do que pode ser visto e do que pode ser entendido. Mesmo autores que escreveram contra a tirania na época, como Torquato Aceto, operaram nas fronteiras do visível e do invisível. Se estamos num reino persegue as pessoas livres, estas devem saber simular e dissimular muito bem seus propósitos aos juízes e policiais mandados pelo governante, de modo a não serem vítimas do poder. Esta é a Dissimulazione onesta, segundo Torquato Aceto.

Francis Bacon, no ensaio Of Simulation and Dissimulation, mostra que a segunda é uma forma política ou de sabedoria. Cabe ao coração forte, ou à mente forte, “conhecer quando deve ser dita a verdade, e fazê-lo. Pois se um homem tem esta penetração de juízo, através do qual ele pode discernir quais coisas devem permanecer abertas, e quais secretas, e o que deve ser mostrado em meia luz, e para quem e quando (estas são, de fato, a arte do Estado, e as artes da vida, como Tacito as chama), para ele, um hábito de dissimulação é uma pobreza. Existem três gráus neste ato de esconder e velar o ser de um homem. O primeiro é a reserva e o segredo. Quando uma pessoa mantem sem observação ou sem cuidados o que ele é. O segundo, a dissimulação, no negativo, quando ela deixa surgir sinais e argumentos, que indicam que ela não é o que é. O terceiro, simulação no afirmativo, quando ela, industriosamente e de modo expresso, finge ser o que ela não é. Para o primeiro caso, temos o segredo. Esta é a virtude do confessor. E com certeza, o segredo tem muitas confissões. Para quem se abre, dizemos que é um falador ou um tagarela? Mas se uma pessoa é pensada como secreta, ela suscita a descoberta. Assim, mistérios são devidos ao segredo. Mas os gárrulos que falam sobre o que conhecem, falarão sobre o que não conhecem. O segundo é dissimulação. Esta segue do segredo como por necessidade. Quem deve ser secreto, deve dissimular em algum gráu. Porque os homens são tão astutos, e não suportam que um homem permananeça sem decidir entre eles. Assim, nenhum homem pode permanecer secreto, sem dissimular pelo menos um pouco. Para o terceiro, a simulação e profissão falsa, julgo-a mais culposa e menos política, exceto em grandes e raras matérias. Um costume geral de simulação sendo vício, faz com que a simulação seja ampliada para outras coisas”. E continua Bacon: “As grandes vantagens da simulação e da dissimulação são três. Primeiro, fazer com que a oposição adormeça possibilitando surpreendê-la. Pois onde as intenções de um homem são publicadas ocorre um barulho para convocar as pessoas contra ele. A segunda é proporcionar a determinada pessoa uma tranqüila privacidade no retiro de si mesma. Pois se alguém dá uma declaração, deve ir adiante ou comete falta. A terceira vantagem é descobrir melhor a mente alheia. Pois quem abre a si mesmo dificilmente verá aberto para si o campo do adversário. Existem também três desvantagens. Primeira: a simulação e a dissimulação trazem consigo uma exibição de medo, o que prejudica todos os negócios. Segunda: ela confunde pessoas que poderiam, de outro modo, cooperar com um indivíduo, e faz com que ele fique solitário, caminhe sozinho rumo aos seus fins. O terceiro e maior inconveniente é retirar da pessoa o principal instrumento de ação, a confiança e a fé”.

A última frase de Bacon é vital quando se trata da governabilidade em regime não tirânico. Sem a fé pública, a razão de Estado torna-se pura propaganda ou força. Se as individualidades livres precisam dissimular nos governos tirânicos, estes últimos precisam ainda mais da dissimulação para apanhar seus inimigos ocultos. Assim, comenta Macchia, o político que serve à razão de Estado deve possuir o hábito de viver com o segredo, com o “steganós, aquilo que é escondido, oculto”, chegando à esteganografia. Trata-se de toda uma concepção da própria natureza como grande guardiã de coisas ocultas que devem ser arrancadas com arte e técnica. Sendo a natureza uma astuta fonte de segredos, apenas chegando até eles poder-se-ia atingir a natureza humana, que a integra.

O mesmo Francis Bacon citado acima deu um exemplo fantástico da arte de arrancar sigilosas estruturas naturais. É preciso, dizia ele, “torturar a natureza, para que ela conte os seus segredos”. Não é preciso dizer muito mais sobre esta tecnologia do poder que vai do gabinete do principe ao laboratório do cientista e passa pelas mãos do policial. É algo que pode nos inquietar sabermos que a idéia de verdade, que define boa parte do nosso ideário filosófico e jurídico, tem origem na palavra basanos, pedra de toque para atingir o veraz na tortura. Os antigos gregos usavam o termo para designar a pedra que servia para definir a pureza do ouro. Depois seu uso foi extendido para denotar um teste ou triagem, determinar se alguem era fidedigno. A tortura assim designada serve para extrair tudo o que é escondido, oculto. A tortura traz à luz os veios secretos da natureza. Num livro importante sobre todo esse aspecto, Page du Bois escreve coisas lancinantes sobre este lado pouco estudado da filosofia ocidental. (10)

Tanto o cientista quanto o filósofo usam técnicas de desocultamento que eles partilham com os governantes. Estes últimos arrancam de seus inimigos internos ou externos, através da astúcia, das técnicas como a esteganografia ou de outros refinamentos e violências como a tortura, a “verdade”, meio eficaz de mando. Uma técnica muito usada, desde o século 16, foi a leitura das expressões dos rostos. Em um estudo sobre Descartes intitulado “A razão sonhadora”, analiso este prisma. (11) Antoine Mizauld, em 1565, escreveu um livro para ajudar as pessoas a “julgar incontinenti o natural de cada um apenas pela inspeção da face e dos seus lineamentos”. Como indica Macchia, Mazzarino (ou o pseudo-Mazzarino) ensinava, com base nesta técnica, a distinguir o indivíduo astucioso, pois este possuiria uma saliência na fronte, na altura pouco acima do nariz. O mentiroso teria, ao rir, duas saliências nas bochechas. Assim, o poderoso segue a tentativa de descobrir os intentos secretos de seus inimigos ou liderados nos menores gestos, nas mais tranqüílas situações. Não apenas os olhos eram movidos nesta descoberta: todos os sentidos entravam na economia do desvelamento. O padre jesuita Athanasius Kircher ideou, para as paredes dos palácios, orelhas artificiais que levariam até o gabinete do principe as conversas de súditos, embaixadores, etc. Trata-se de uma economia global do corpo a serviço da razão secreta do Estado. A situação perfeita, para os governantes, seria a de plena transparência dos inimigos e dirigidos, e a sua plena obscuridade própria.

O cuidado com o segredo atingiu o ápice no século 17. Um exemplo pode ilustrar esta situação, quando a burguesia francêsa pediu prestações de contas aos ministros das finanças reais, no instante em que este últimos solicitavam mais recursos para as guerras. A declaração do voto do clero é sintomática. Segundo os sacerdotes, as finanças seriam como o Santissimo Sacramento, escondido no altar. Apenas os padres e os iniciados poderiam deitar os olhos sobre elas. Caso oposto, sacrilegio e perigo rondariam o Estado. A temática do segredo, pois, define todo um aspecto da razão de Estado, incluindo a religião econômica, que hoje é a mais católica e abarca o mundo inteiro.

Afinal, o que é razão de Estado? Um analista diz que ela se assemelha ao jogo viciado. O governante que apela para a razão de Estado para validar atos e tratados opostos às leis comuns do país, age como o jogador desonesto ou mau perdedor : quando as regras do jogo não lhe são favoráveis, ele usa a trapaça do segredo e quebra todas a sequência da partida. Deste modo, ele arranca dos cidadãos a confiança, a fé pública, base mesma da instituição do Estado. (12) Esta metáfora do jogo e das regras é uma das mais antigas da filosofia política. No exato século em que a razão de Estado se firmou, um dos filósofos mais agudos da modernidade, Blaise Pascal, construiu toda uma moral, uma política, uma teologia com aquela base. A vida humana é jogo. E as regras supremas são de acesso dificil aos homens. Só Deus joga com absoluta certeza. E ganha sempre. No caso humano, tudo é incerto, sobretudo no campo das leis e da política. Esta antropologia, que hoje volta a ser um assunto de interesse filosófico e político, é nuclear na história do pensamento moderno. (13) Nesta vertente, é importante a idéia do cálculo como elemento básico da política, plataforma da razão de Estado. Um governante que sabe calcular as suas oportunidades e as de seus inimigos, tem condições de, pelo menos, desrespeitar sem muitos prejuízos as regras “normais” do jogo diplomático, bélico, ou de política interna, como por exemplo nas escolhas para os dirigentes, nas eleições.

A razão de Estado, assevera Lazzeri, não se confunde de imediato com a tirania. Mesmo dirigentes de Estados democráticos podem seguir as suas sendas, ou serem tentados a segui-las. Constituições liberais modernas deixam brechas para o seu uso, em capítulos sobre a segurança pública, etc. Lazzeri vai mais fundo e indica, sem análise é certo, que a própria Declaração dos Direitos do Homem está “cheia de concessões por onde deslizam sem dificuldades desejos despóticos” da razão de Estado.

Outro aspecto importante: a razão de Estado, além dos conhecimentos e técnicas mais rudimentares, como as que indiquei acima, incorporou ao seu procedimento o saber quantitativo e qualitativo sobre a sociedade moderna. O programa desta atitude encontra-se no século 16, sobretudo nas obras de Francis Bacon. É dele a noção de que knowledge and power meet in one, banalizada no Brasil como “saber é poder”. Não se trata disto. O Estado, pensava Bacon, precisa instituir e organizar saberes sobre a natureza e os homens, de modo a agir com eficácia na sua expansão e domínio. Um Estado sem saberes é frágil, um Estado com saberes e com força física é poderoso. Esta receita, como temos consciência, serviu muito à Inglaterra, em toda a sua expansão colonial pelo mundo, das Américas à Asia.

Como indica Lazzeri, a razão de Estado une-se à idéia de que “nada presidirá mais eficazmente os destinos de um Estado do que o conhecimento de suas qualidades específicas: seu povo, sua geografia, seu tempo, seus recursos, sua organização econômica e o modo de aprimorá-la. O governo da razão de Estado se apoiará num saber pouco a pouco instituido numa teoria moderna do político e finalmente conduzido ao conteúdo firme de uma ciência da administração e de seus efeitos sobre a sociedade da qual o mercantilismo, o cameralismo, a estatística e as teorias da polícia constituem o núcleo duro. A razão de Estado remete para uma outra forma, então, de racionalidade governamental e de técnica de governo”.O conhecimento técnico e político ajuda a definir o “olhar soberano”, com o qual os dirigentes inspecionam o corpo social, para manter o mando.

Haveria, pois, uma diferença essencial entre a razão do governante e a dos governados. O primeiro pode enxergar, graças aos informes e saberes de todas as ordens, trazidos pela máquina do poder, realidades inacessíveis aos segundos. É contra esta doutrina que se levantam todas as perspectivas democráticas modernas, a começar por Spinoza. Os pensadores democratas, como Diderot, Condorcet e outros, propõem que os cidadãos sejam educados ao máximo, e possam acompanhar mesmo os cálculos economicos e políticos do Estado. Ao mesmo tempo, pregam a mais ampla liberdade de imprensa e de debate, para que as informações não fiquem restritas ao seleto número dos dirigentes. Este aspecto também foi tratado por mim no primeiro texto de O Caldeirão de Medéia, de mesmo nome, que resulta de um seminário feito na Câmara dos Deputados, em Brasilia, na sua Comissão de Ciência e de Tecnologia.

A idéia de razão de Estado é vulgarmente atribuída a Maquiavel, mas é preciso moderar muito esta enunciação. O trecho mais célebre, neste sentido, é aquele onde o escritor florentino afirma ser “necessário a um príncipe, se deseja se conservar, aprender a não poder ser bom, e usar dele segundo a necessidade (secondo la necessita)”. (Principe, capítulo 15). E mais : “Estando o principe necessitado de usar a besta, deve escolher dentre elas a reposa e o leão, porque o leão não se defende dos laços e a raposa não se defende dos lobos. Necessita, pois, o principe, ser raposa para conhecer os laços e leão para espantar os lobos. Os que se apoiam apenas no leão não entendem (a arte de governar). Não pode, nem deve, portanto, um senhor prudente observar a fé jurada quando tal observância se torna contrária e passou a ocasião que obrigou a fazer a promessa. Se os homens fossem bons, este preceito não o seria; mas como eles são perversos e não guardaram sua fé jurada contigo, não tens porque guardá-la em relação a eles. Nunca faltam a um principe ocasiões legítimas de coonestar a inobservância”. E finalmente, ainda no Principe: “para manter o Estado o principe, sobretudo se for um principe novo, precisará operar contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. E se necessita que tenha um animo disposto a tornar-se segundo mandem os ventos e mudanças da fortuna e, não separar-se do bem se puder faze-lo, mas saber entrar no mal se é necessário”.

Estas sentenças ressoam nos Discursos sobre a primeira decada de Tito Livio: “quando se delibera acerca da saúde da pátria, não deve-se deixar que prevaleçam considerações de justiça ou injustiça, piedade ou crueldade, honra ou ignominia mas, deixando de lado qualquer consideração outra, seguir por inteiro o partido que lhe salve a vida e lhe conserve a liberdade”. A corrupção dos homens é fato constante e universal, mesmo nos que foram educados para o bem. Há uma persistência das paixões : “em todas as cidades e em todos os povos há e sempre houve sempre os mesmos desejos e humores, de tal modo que é fácil para quem examina com diligência as coisas passadas, prever em toda república o futuro e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não encontre nenhum empregado por eles, imaginar outros novos segundo o parecido dos acontecimentos”. (Discorsi, livro I).

A desconfiança de Maquiavel na ética do povo tem fundamentos sólidos. Ética, como sabemos, é o conjunto de atitudes, hábitos, que se tornaram costumeiros e deixaram até mesmo de ser conscientes, sendo assumidos como “naturais” e inquestionáveis. Muito do que se disse no século 17 e 18, e até mesmo em nossos dias, sobre o “preconceito”, tem esta base. O povo adere às práticas e valores antigos. Assim, escreve Maquiavel, para mudar hábitos arraigados e sólidos é preciso dissimular, fngir que a sua essência permanece quando medidas para a sua mudança são implementadas pelos governantes. Se o principe fosse contra os hábitos populares, dificilmente ele se manteria. Mas se pouco a pouco ele muda as formas e as instituições, então consegue mudar a ética do povo. Assim, diz Maquiavel: “quem deseja reformar o estado de uma cidade e quer ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita conservar pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora na realidade as novas sejam inteiramente distintas das velhas. Porque a grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são”. (Discorsi, livro I).

Francis Bacon, para citá-lo novamente, mostra-se atento aos conselhos de Maquiavel. Nos Ensaios, o item Of Innovations afirma : “Seguramente, todo remédio é uma inovação; e quem não aplica novos remédios, deve esperar novos males. Pois o tempo é o maior inovador, e se o tempo certamente altera todas as coisas para pior, a sabedoria e o conselho não as alteram para melhor, qual será o fim? É verdade, o que é posto pelo costume, embora não seja bom, pelo menos se mantem (...) a inovação é coisa turbulenta e quem reverencia muito o passado receia as coisas novas. As inovações dos homens deveriam seguir o próprio tempo, o qual inova muito, mas mansamente, por gráus difíceis de serem percebidos. (...) É também muito bom não experimentar nos Estados, exceto quando a necessidade for urgente, ou a utilidade evidente. E deve-se estar atento, de que é reforma que traz a mudança, e não o desejo de mudança, que pretende tudo reformar. Finalmente, a novidade, embora não deva ser rejeitada, deve ser suspeita. Como diz a Escritura, que contemplemos a antiga estrada, e depois olhemos ao nosso redor, e descobriremos o caminho certo para nele seguir”. O povo deseja novidades mas rejeita as que o coloquem na incerteza de saber quem manda. De um modo ou de outro, a massa tem opiniões que não devem servir como paradigma do governante.

O problema da ética enquanto costume é dos mais graves dentre os que surgem no âmbito político. Não se muda uma forma de vida, por mais desastrosa que ela seja, quando é antiga e aceita como “natural”, de um só golpe. Um povo acostumado a determinadas leis, ou a certas maneiras de comando nas instituições de Estado ou religiosas, encara com desconfiança as inovações, dado que se habituou às fórmulas arcaicas que integram, por assim dizer, a sua alma. Se este é um perigo eminente na recepção das ciências, das técnicas e da filosofia, se isto faz com que renovadores artísticos sejam mal vistos nos inícios de suas carreiras ou de suas propostas, o hábito pode derrubar regimes com inspiração dmeocrática. Este problema pode explicar o paradoxo de Rousseau, o qual dizia ser preciso forçar os homens à vida livre. Examinemos esse ponto num avisado analista dos costumes, Michel de Montaigne. Trata-se do capítulo 22, Livro I dos Ensaios. “Sobre o costume e de não mudar facilmente uma lei recebida”.

Montaigne, com o estilo saboroso habitual, inicia o capítulo com um exemplo eloquente. “O que seria o costume?” Alguém, diz o filósofo, o definiu muito bem com o símile de uma senhora camponêsa que aprendeu a acariciar um bezerrinho entre seus braços. Ela ficou acostumada a fazer isto, mesmo quando o bicho se transformou num grande boi. Esta é uma verdade, fala Montaigne, porque o costume é uma violenta e traiçoeira professora. O costume se abriga em nós pouco a pouco, escondido, e nos impõe sua autoridade. No início ele pode ser suave e doce, e isto nos tranquiliza. Mas no fim mostra um rosto tirânico e furioso, contra o qual sequer temos a liberdade de erguer os olhos. E vemos, assustados, que ele destrói todas as regras da natureza. Vem a seguir uma série de costumes que se tornaram comuns, por mais atrozes que eles tenham sido no início. Antes, entretanto, Montaigne cita Platão e os médicos. Nesta matéria, muitos deixam a arte médica, ou política, em proveito da autoridade costumeira, ética.

Assim, entregues ao costumes e à opinião, muitos cometem desatinos, por hábito adquirido. Um rei que acostumou seu estômago a ingerir veneno, uma rapariga cujo hábito é comer aranhas, alguns povos que ingeriam gafanhotos, formigas, morcêgos, lagartos, sapos. Para certos povos, as carnes européias eram mortais e venenosas. Qual a causa da citação desses costumes estranhos? É porque, afiança Montaigne, o costume torna os nossos sentidos abestalhados (hebetés). O filósofo refere-se aqui ao conceito de sensibilidade mental e corporal trazido dos gregos. Uma pessoa marcada pela ausência de sensibilidade, no termo grego, é anaisthêtos. Quanto mais alguém perde a sensibilidade para os matizes do real, mais está acostumado a ver em preto e branco, menos percebe o mundo como ele é ou pode ser. Mais se aferra ao costume e mais é dele vítima, antes de ser algoz dos outros. O costume faz com que os ouvidos, os olhos, não percebam a natureza e os homens na sua medida própria, mas segundo a régua dos preconceitos. Em certas situações, o costume muda até a percepção. Um soldado se acostuma ao barulho dos canhões enquanto para as demais pessoas ele é insuportável. Um sino que bate todo dia integra a rotina, apesar do seu incômodo para os não acostumados. Platão censurou um menino, porque ele jogava com nozes. Resposta da criança: “tu me censuras por pouca coisa”. Réplica de Platão: “o costume não é pouca coisa” (anedota narrada por Diógenes Laércio).

Os piores costumes, os que definem as piores éticas, acrescenta Montaigne, nascem no berço. Aqui, Montaigne apenas amplia o que leu em Platão. Nosso primeiro governo está nas mãos das babás. Estas são complacentes com nossos mais agressivos instintos. Mas não apenas elas, pais e mães facilitam péssimos costumes, deixando que eles entrem em nossa alma e corpo. A mãe que assiste, tranquila ou maravilhada, o pimpolho torcer o pescoço de um frango, ferir um cão ou gato, o pai que é tolo o bastante por tomar como futura prova de virilidade quando enxerga seu filho insultar um transeunte ou empregado que não podem se defender, ou quando nota que ele engana com trapaças os seus companheiros, todos esses comportamentos engendram tiranos. Aqueles pais regam as sementes da crueldade e da traição. Com o crescimento das sementes malditas, vem a força dos costumes adquiridos. Pior é quando os pais desculpam violências dizendo que elas são feitas por crianças frágeis e inocentes. É preciso, diz Montaigne ainda seguindo Platão, ensinar as crianças a odiar os vícios de sua própria contextura, ensinar o quanto eles são disformes, para que elas deles fujam, não só do exterior, mas do fundo do coração. Platão dizia que ensinar era tingir almas com a tintura das leis. É preciso que as leis esteja marcadas de modo indelével nas almas. Caso contrário, o respeito da lei será apenas exterior. A lei deve ser gravada no coração dos homens.

A política que se baseia apenas nos costumes é insana. Nenhuma fantasia terrível, arrisca dizer Montaigne, deixa de encontrar exemplos anteriores que a torne possível. Os costumes são relativos e diferem de povo a povo. Mas eles imperam em todos eles. Mesmo as leis da consciência, que dizemos nascer da natureza, brotam dos costumes. Cada um venera internamente as opiniões e mores aprovados e recebidos ao seu redor, e deles não se separa sem remorsos. O principal efeito do costume é nos dominar de tal modo, que ele entra em nós e raciocina em nós as suas ordens. Alimentamos esse domínio desde a infância, quando foram infundidas as suas sementes em nós, por nossos pais. E pensamos tudo aquilo que está fora dos costumes, é estranho à razão. Deus sabe, afiança Montaigne, o quanto isto é desarrazoadamente freqüente. Raros costumes trazem o bem coletivo. É verdade que povos nutridos de liberdade e autonomia, consideram toda outra forma de governo contrária à natureza. Mas os que se acostumaram à monarquia fazem o mesmo. Montaigne chama a atenção para o problema da opinião pública. E cita o texto platônico das Leis. Neste, o grande inimigo da opinião pensa, num paradoxo, que ela pode ser usada para impedir atos contrários à natureza, como o parricidio, a homosexualidade, etc. Yvon Brès, em trabalho sobre a psicologia de Platão, indica bem o quanto o filósofo ateniense foi realista no uso da retórica para persuadir massas. Desde o vinho, recomendado como preparador da persuasão, até o teatro, tudo o que pudesse causar horror ao crime deveria ser utilizado pelos governantes para determinar o rumo da consciência pública. No livro 8 (838 c) das Leis, Platão discute o incesto . No comentário de Yvon Brès: “se cada homem pudesse experimentar diante de todo menino ou menina o mesmo sentimento de retenção que tem diante de um filho, um irmão, uma filha ou irmã, a lei moral se beneficiaria com a força desta `lei não escrita´ que se opõe ao incesto. Ora esta força vem de uma espécie de unanimidade: desde nossa idade mais tenra, vemos a comédia e a tragédia nos representar o comportamento de Tieste, de Édipo e de Macareu como abominável; nós os vemos dando-se a morte quando descobrem e grandeza de sua falta . E Megilos, [personagem das Leis] aprova: sim, a opinião pública tem verdadeiramente uma força extraordinária”. (14)

Explicita Montaigne, ao discutir o mesmo problema a eficácia da a receita platônica, segundo a qual as mais belas filhas não atrairiam o amor dos pais, nem os irmãos mais excelentes em beleza, o amor das irmãs. As fábulas mesmas de Tieste, Edipo, Macareu, infundiriam, com o prazer de seu canto, esta crença útil no macio cérebro das crianças. Assim, mudanças dos costumes podem ser saudáveis, desde que introduzidas pelos magistrados, com o devido controle. Esta lição platônica é extraída, pois, pelo cético Montaigne. A religião cristã, diz ele, tem todas as marcas de extrema utilidade e justiça. Mas nenhuma delas é mais aparente, do que a exata recomendação da obediência ao magistrado e a manutenção da ordem pública. Deus não destruiu, para nos salvar, a ordem política. Assim, as inovações devem ser feitas de modo controlado para evitar as opiniões antigas e apaixonadas das massas indiscretas.

Toda essa espécie de platonismo que define boa parte do pensamento de Maquiavel e de seus leitores, como Bacon, ou contemporâneos como Montaigne, é agudo na desconfiança da doxa que impera entre o povo. O que não o impede o Florentino, leitor de muitos outros antigos além de Platão, de romper o ideal de um Estado pequeno, com número restrito de cidadãos e cujo espaço é restrito. Assim, embora deseje um Estado sem rupturas internas, ele não aceita a tese platônica da cidade com apenas 5040 membros, ou a cidade aristotélica na qual todos os cidadãos se conhecem. Ele escreve: “tendo organizado uma república capaz de manter-se sem ampliação, se a necessidade a conduz a ampliar-se, veremos que seus fundamentos cedem e a república se arruina a seguir. E, por outra parte, se o céu a favorecesse de tal modo que não tivesse ela de guerrear, nasceria disto um ócio que a tornaria efeminada ou dividida, coisas que, juntas ou separadamente, causariam sua ruina. Como não se pode, pois, encontrar um justo meio nisto, nem equilibrá-lo, é conveniente escolher, ao organizar uma república, o caminho mais honroso e ordená-la de tal modo que, mesmo que a necessidade a obrigue a ampliar-se, possa ser capaz de se conservar ocupada”. (Discorsi) (15)

A razão de Estado, nessa leitura, baseia-se no conhecimento das paixões humanas, por parte do principe, e no imperativo de não seguir a cabeça do povo, preso às formas éticas injustificadas e à opinião. Novamente, há bons elementos platônicos no diagnóstico feito por ele sobre a saúde da república e sobre o papel que nela desempenha o povo. Ainda nos Discorsi podemos ler: “O quão erradas são muitas vezes as opiniões dos homens é coisa que viram e verão todos os que testemunharam as suas deliberações, as quais, a menos que estejam dirigidas por homens excelentes, são muitas vezes contrárias a toda verdade. Mas como nas repúblicas corrompidas, sobretudo em períodos de paz e tranqüilidade, os homens superiores são aborrecidos, seja por inveja ou por ambição dos outros, segue-se daí que se dá preferência ao que o erro comum julga como bom ou ao que sugerem homens que são mais desejosos de conseguir o favor geral do que o bem comum”.

Como dominar a multidão indiscreta e crédula? O remédio situa-se no mesmo plano da doença, no principio homeopático do semelhante para curar o semelhante. Se a massa só acredita no que parece e não busca o que é, para dominá-la é preciso encontrar “um homem grave e digno e com autoridade, que se oponha a ela....concluo, pois, que não existe meio mais seguro de acalmar a multidão excitada do que a presença de algum homem de aparência imponente e que será respeitado”. (Discorsi). Os liderados obedecem porque enxergam seus iguais obedecendo. A imitação, a mimesis descrita por Platão e pelos antigos, é vital na ordem do governo. Como a massa é sempre semelhante aos seus governantes, adianta Maquiavel, “Lorenzo de Medicis confirma esta idéia dizendo: ´o que faz o senhor, o fazem os muitos, pois todos os olhos estão fixados no que o senhor faz ”. O senhor faz uma coisa diante dos liderados, mas precisa, tem necessidade, de fazer outra coisa longe de seus olhos. Aí estaria a base da razão de Estado.

A palavra mais utilizada por Maquiavel é “necessidade”. Nela unem-se a perversão humana, a tolice da massa, as variações da fortuna e a urgência dos momentos particulares. Tudo isso para manter o Estado. Esta doutrina, afiança Lazzeri, foi combatida no século mesmo de Maquiavel por pensadores que defendiam os padrões morais antigos. Seria este o caso de Innocent Gentillet (1576). O texto de Gentillet, hoje publicado como Anti-Maquiavel, tem como título em 1576 o seguinte: Discurso sobre os meios de bem governar e manter em boa paz um reino ou outro principado. Dividido em tres partes, a saber, do Conselho, da Religião, e da Polícia que deve manter um principe. Contra Nicolau Maquiavel, Florentino. (16) Gentillet coloca a arte de bem governar contra a ragion di stato. Esta expressão, no entanto, não foi cunhada por Maquiavel, ela vem de Guicciardini que a emprega como ragione degli Stati. Na indicação de Maurizio Viroli : “nos inícios da segunda década do século, o conflito entre razão legal e moral e o interesse do Estado, começou a ser exposto não como uma divergência entre razão e prática do Estado, mas como um conflito entre razão moral e legal e outra ´razão, a ´razão de Estado´. O conceito de ´razão de Estado aparece pela primeira vez em Francesco Guicciardini, no Dialogo de reggimento di Firenze composto entre 1521 e 1524. Citando o exemplo dos cidadãos de Genova que não libertaram os prisioneiros feitos na batalha de Meloria em 1284, assim causando irreparável dano nos seus inimigos de Pisa, Bernardo del Nero argumenta que os de Genova fizeram uma crueldade que a consciência moral nunca poderia aprovar. No entanto, desde que todos os Estados, —com a única exceção das repúblicas no interior de seu próprio território— estão erguidas em nada mais do que a violência, para preservá-las é necessário apelar para a violência sempre e sempre. E Bernardo del Nero conclui o seguinte : 'quando falo em assassinato ou em manter os de Pisa na prisão, eu talvez não fale como cristão, falo de acordo com a razão e a prática dos Estados [secondo la ragione e l'uso degli stati]'. Ele fala, portanto, e trata-se de uma nota importante, que ninguém que desconheça isto é desculpável perante Deus porque —como dizem os frades— mostra ‘ígnorância crassa’. Quem reconhece o ponto não pode dizer que é razoável ouvir a consciência pessoal em um caso e desprezá-la em outro. (…) É dificil viver no mundo sem ofender a Deus. É preciso falar realisticamente sobre as coisas, tal como elas são de fato”. (17)

As críticas a Maquiavel são ampliadas até que em 1589 ele é atacado pelo jesuita Giovanni Botero (18) secretário de Roberto Bellarmino, o idealizador da soberania indireta do poder religioso contra o Estado, muito criticado por Hobbes, Filmer e outros teóricos do pensamento absolutista sobre o Estado.

Assim, passam a existir duas formas de razão de Estado: a atribuída, com fundamentos ou não, a Maquiavel e a que se define nos programas dos jesuítas, eles mesmos acusados de maquiavelismo. É fascinantes acompanhar, dos inícios da Companhia de Jesus aos nossos dias, a suspeita que ela desperta em católicos, protestantes, liberais, anarquistas, comunistas. Ainda nos séculos 19 e 20, os anarquistas enxergavam nas idéias do marxismo sobre o partido uma imitação da Companhia de Jesus, inclusive, segundo Alain Besançon, nas “tenebrosas manobras” jesuíticas praticadas pelos que formariam mais tarde o Partido bolchevique. Bakunine acusou Netchaev, antes disto, de organizar a máquina revolucionária segundo “os sistema de Loyola e de Maquiavel”. Leão Trostky, em 1938, num estudo importante intitulado “A nossa moral e a deles”, compara o partido bolchevique e a Companhia, ambos, segundo o revolucionário, marcados pela degenerescência burocrática. (19)

Existe uma tese, a dominante, sobre as bases da doutrina antimaquiavélica, sobretudo a católica. Ela seria uma tentativa de conservar, custasse o que custasse, a base política feudal, predominante na Idade Média. Creio que Lazzeri tem razão quando indica que este juízo deve ser corrigido. Autor eu mesmo de um estudo sobre a Igreja Católica (20) e analista do pensamento conservador (21) percebi que a conservação proposta pelo catolicismo não se encontra sobretudo nas formas de Estado, mas na manutenção do religioso como poder. Assim, o compromisso da Igreja não se define, em termos absolutos, com esta ou aquela determinação social, política, jurídica. Os doutrinadores do seu mando colocam-se sempre no horizonte da prudente mudança segundo os tempos, mesmo que alguns deles se aferrem a formas e conteúdos ultrapassados. O conservadorismo religioso não rompe com novas maneiras de governar, ou administrar o Estado. Pelo contrário. A própria Igreja realiza, em seu modo de governo interno, modificações modernizadoras relevantes. É possível que uma instituição seja conservadora no plano do seu pensamento, sem definir-se como oposta à modernização. Este prisma já foi analisado por Max Weber, de modo estratégico. Assim, quando na Contra reforma a Igreja adequou a sua visão de si mesma e de seu mando, com Roberto Bellarmino e a soberania indireta do Sumo Pontífice, ela na verdade inovou diante das suas doutrinas medievais, sobretudo das que, no máximo declínio do poder do Papa, num espasmo, exigia para este as chaves dos reinos mundano e espiritual. (22) Com o Concilio de Trento, a Igreja renovou profundamente suas doutrinas e práticas, não retroagiu para a Idade Média, mas encontrou um novo modus vivendi com os poderes terrestres.

É tal Igreja que assistiu a expansão das doutrinas de Spinoza sobre o Estado e a liberdade civil, contra as pretensões do mando teológico-politico.


GÊNESE E INSTABILIDADE DOS REGIMES POLÍTICOS EM SPINOZA.


A doutrina política de Spinoza liga-se à teoria das paixões. Ela pode ser lida, nos mínimos detalhes, na Ética. A paixão compreendida permite entender também as causas e fundamentos da sociedade política e das instituições. (23) É a partir das paixões que Spinoza entende as disfunções institucionais encontradas na origem da auto-destruição das sociedades políticas. As paixões geram o Estado e podem destruí-lo. Com esta plataforma, analisemos as propostas indicadas por Spinoza para remediar a marcha da dissolução da sociedade política. Sendo o filósofo um defensor da democracia, os remédios por ele sugeridos integram a auto-regulagem das disfunções institucionais. Como toda a sua filosofia, da natureza ao conhecimento e deste à administração das paixões, é imanente (as mudanças não vêm de fora, de uma divindade ou de valores eternos), e monista, qualquer solução externa, em vez de remediar um status quo em declínio serve, na verdade, para piorá-lo. É por esse motivo que as teses teológico-políticas desgastam ainda mais o Estado, conduzindo-o à guerra das religiões, tão comuns no século 17 europeu.

Tomemos o artigo 7 do Capitulo I do Tratado Político: “Visto que todos os homens, bárbaros ou cultivados, formam em toda parte costumes que se dão um estatuto civil, não é dos ensinos da razão, mas da natureza comum dos homens, isto é, da sua condição, que é preciso as causas e os fundamentos naturais dos Estados…”. (24) Quando Spinoza fala em “condição comum dos homens”, refere-se a eles como seres apaixonados. Mas submetidos a quais paixões? Todo o Tratado Político pressupõe que os homens desejam necessáriamente bens materiais. Trata-se da avaritia, paixão universal e constante. (TP, X/6). Eles também são necessariamente supersticiosos. “Concluo, portanto, dizendo que os vícios inerentes ao estado de paz (…) não devem ser combatidos diretamente, mas de modo indireto, colocando-se princípios fundamentais de modo que o maior número se esforce não de viver sábiamente (isto é impossível) mas se deixe dirigir pelas afecções das quais o Estado arranca mais benefícios. É preciso tender sobretudo a fazer com os ricos sejam senão ecônomos, pelo menos que eles desejem aumentar suas riquezas. Pois não há dúvida que se esta avidez (avaritia) que é uma paixão universal, e constante, seja alimentada pelo desejo de glória, a maioria se aplicará com maior zelo a aumentar a sua riqueza sem os meios desonrosos , o ter que eles podem pretender serem bem considerados evitando a vergonha (ignomínia)”. (25) O desejo de possuir bens materiais, na sua origem, é exposto na primeira metade do livro III da Ética.

“Toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”. (Etica, III/4-9) (26) Quando esse esforço (conatus) é favorecido por causas externas, ele se transforma em alegria (E, III, 11) (27) Se o nosso corpo aumenta ou diminui sua potência de agir, a idéia desta coisa aumenta e diminui, aumenta ou reduz a potência da nossa mente. (28) Quando a alegria é seguida da causa exterior que lhe atribuimos, ela torna-se amor por esta causa externa (E, III, 12-13) Amor é a alegria seguida da idéia de uma causa externa, ódio a tristeza seguida da idéia da causa externa. Quem ama se esforça necessariamente por ter presente e conservar a coisa que ama, quem odeia se esforça por destruir a coisa que odeia. Se amamos algo, nos apegamos incondicionalmente e queremos nos apropriar e conservá-lo, portanto. Nós nos alienamos inteiramente nele. Esta alienação pode passar da coisa que nos alegra para outras, a ela ligadas em nossa mente. Assim ocorre com os meios para conseguí-la no futuro, como é o caso do dinheiro ou da terra.

Para conseguir o necessário para todos os indivíduos, as forças de cada um deles não bastariam se os homens não se prestassem serviços mútuos. O dinheiro tornou-se instrumento com o qual nos proporcionamos todas as coisas, sendo ele o resumo de todas as riquezas, tanto que sua imagem ocupa ordináriamente mais do que todas as outras coisas nas almas vulgares. Elas não podem imaginar nenhum tipo de alegria, senão acompanhando como causa a idéia da moeda. Este, no entanto, é um vício nos que estão à busca de dinheiro, não por necessidade nem para prover as necessidades vitais, mas porque aprenderam a arte variada de enriquecer e se honram de possuir. Eles dão ao corpo o seu pasto, segundo o costume, mas tentando poupar, porque acreditam perdida toda parte de seus bens dispendida para a conservação do corpo. Para os que conhecem o verdadeiro uso da moeda, e regulam sua riqueza segundo as necessidades apenas, eles vivem contentes com pouco. (29)

No Apêndice do livro I da Ética, mostra-se como semelhante teoria do amor permite explicar a origem de nossa crença em divindades antropomórficas. Deus existe necessariamente. Ele é único. Ele age apenas pela necessidade de sua natureza. Ele é a causa livre de todas as coisas. Tudo é em Deus e depende dele, nada pode ser concebido nem ser sem Ele. Tudo foi prederminado por Deus, não por livre vontade, por um beneplácito absoluto, mas pela sua natureza absoluta, ou seja, por sua potência infinita. Os homens imaginam que todas as coisas da natureza agem, como eles, tendo em vista um fim. E imaginam que Deus dirige tudo para uma finalidade. Deus fez o homem para que ele lhe prestasse culto. Isto é um preconceito. Todos nascem sem o conhecimento das causas das coisas e todos têm apetite de buscar o que lhes é útil. O que está em sua consciência. Daí,

1) os homens imaginam ser livres, porque têm consciência de sua volições e de seu apetite e não pensam, mesmo em sonho, nas causas que os dispõem a apetecer e a querer, não possuindo delas nenhum conhecimento.
2) Eles agem sempre tendo em vista um fim, o útil que lhes apetece. Eles se esforçam sempre e unicamente para conhecer as causas finais das coisas completadas e se colocam em repouso quando delas são informados, não tendo mais razões de se inquietar.
3) Se não podem conseguir tais razões finais dos outros, refletem sobre os fins pelos quais são determinados em ações semelhantes, e assim julgam os outros por eles. Como encontram em si mesmos e fora de si meios que ajudam para atingir o que é útil (olhos para ver, dentes para mastigar, ervas e animais como alimento, Sol para iluminar, mar para produzir peixes) eles chegam a considerar tudo o que está no interior da natureza enquanto meio para seu uso. Como tais meios não são produzidos por eles, persuadem-se da existência de um ou vários diretores da natureza (Naturae rectores) dotados da liberdade humana, que provêm as suas necessidades e tudo colocam ao seu uso.
4) Como ignoram a compleição daqueles seres, julgam-na segundo a sua própria e admitem que os deuses dirigem tudo para uso dos homens, afim de que eles se apeguem às divindades e para serem honrados pelos humanos. E todos, projetando a sua própria compleição, inventaram no seu engenho diversos meios de cultuar Deus, com o fim de serem amados por Ele acima de todos os demais. E assim, obter que Ele dirigisse a natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua insaciável avidez (avaritia).
5) Tal preconceito se transforma em superstição e lança raizes profundas na mente humana. Tentanto dizer que a natureza nada faz em vão (segundo a sua economia, na qual eles são o fim), nada mais provam que os deuses e a natureza deliram como eles. Como a natureza comporta furacões, tempestades, terremotos, etc. coisa naturais, tanto quanto as que servem utilmente aos homens, este tentam inverter toda a fábrica natural, inventando uma outra. E admitem que os juizos divinos transcendem os humanos e, portanto, a verdade nunca seria acessível a eles. Isto seria assim, se as matemáticas ocupadas não com os fins mas apenas com as essências e propriedades das figuras, não apresentassem uma outra norma da verdade, permitindo perceber os preconceitos comuns e chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas.

Além da Ética, o Prefácio do Tratado Teológico Político analisa o mecanismo pelo qual quando somos presas do medo (E, III/18 e Escólio 2) tal crença se transforma em superstição (E, III, 50 e Escólio). Tanto o Estado quanto as superstições, como a avaritia, a fome de bens, são explicados pela teoria das paixões. Donde a alienação explicada por Spinoza é dupla: ela é econômica e ideológica. No artigo 5 do capítulo I do Tratado Político Spinoza resume as teoria das relações humanas apaixonadas, tal como a expôs na segunda metade do livro III da Ética. As paixões analisadas são a piedade, a ambição da glória, a ambição de mando e a inveja. Todas têm uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução é dada na Ética III/27. “Se imaginamos que uma coisa semelhante (simile) a nós e diante da qual não experimentamos nenhum afecção de nenhum modo, experimenta alguma afecção, experimentamos por isto mesmo uma afecção semelhante. As imagens das coisas são afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se estivessem presentes em nós, ou seja, cuja idéia envolve a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo a natureza presente de um corpo externo. Se a natureza do corpo externo é simile à do nosso corpo, a idéia do corpo externo que imaginamos, envolve uma afecção do nosso corpo similar à do corpo externo. Por conseguinte, se imaginamos algum semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolve um afecção similar do nosso corpo. É por isso que imaginamos que se uma coisa similar a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção similar à sua. Se, pelo contrário, tivessemos ódio uma coisa similar a nós, experimentariamos, na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua”. (30) Quando vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor (é a piedade, E. III/27) e queremos socorrê-lo (é a benevolência, E III/27, corolário 3). Se conseguimos socorrê-lo e ele se alegra e, pois, nos alegramos com a idéia de nós mesmos como causa (é a glória, E III/30 e escólio) e como se trata de um sentimento muito agradável, desejamos, para reproduzi-lo, continuar na ajuda aos outros (é a ambição da glória, E III/29 e escólio).

Mas se desejamos fazer alguém feliz, não queremos no entanto lhe sacrificar nossos desejos próprios. Nos esforçamos, pois, para resolver esta contradição, e tentamos converter o outro aos nossos próprios valores, obrigando-o a amar o que amamos e a odiar o que odiamos (E, III/31 e corolário): a ambição de glória se transforma em ambição de mando (E, III/31 escólio) e esta ambição de mando pode gerar a pior das intolerâncias (Id), em especial a ideológica, a intolerância supersticiosa. Se conseguimos fazer alguém gostar do que queremos que ele goste, se ele se apossa de alguma dessas coisas e com ela se alegra, e se esta coisa só pode ser possuida por um indivíduo, desejamos delas gozar sozinhos e, por conseguinte, dele arrancá-la, esta é a inveja (E, III/3 e escólio) que se manifesta sobretudo em matéria econômica. Mas quando conseguimos privar o outro daquilo que o alegrava, ele fica triste, temos piedade dele e o ciclo recomeça.

No artigo I do capitulo VI do Tratado Político Spinoza afirma que os homens vivem em sociedade política não devido à razão, mas pelas paixões, como a do medo. Ele cita o artigo 9 do Capitulo III, onde mostrou que os homens se unem quando o medo que sentiam em comum se transforma em indignação. Esta é uma forma de imitação afetiva (Ética III/27, corolário 1): ela é o ódio experimentado por quem faz mal a um ser similar a nós, e sentimos isso por imitação dos sentimentos da vítima. Imagine-se o estado de natureza, com um indivíduo que não consegue comida. Por piedade ou desejo de glória, alguns o socorrem. Se a ajuda é eficaz, sua piedade ou ambição de glória se transforma em ambição de mando e de inveja, e começa a agressão contra o “socorrido” que não aceita ser mandado ou não aceita falar sempre do socorro, para glória do seu “salvador”. Alguns que, até então, apenas assistiam aquelas cenas, se indignam com o mal que lhe é feito e o ajudam. E isto se complica e se repete muitas vezes. O agredido se torna agressor e vice-versa, levando consigo grupos e coletivos de agressores e de agredidos. E aumenta a indignação geral. E cada um se beneficiará e também será prejudicado pelas agressões. Cada um tem medo de todos e espera obter ajuda de todos. Uma só coisa suscita em todos o medo e a esperança: o poder coletivo. (TP, III/3). Mas todos julgam esta situação intolerável e se dispõe a ajudar cada um que julga ser vítima de agressão. Cada vez que um entra em conflito, cada um deles pede socorro aos outros, e os que se julgam mais semelhantes ao agredido, agredirão os seus agressores. Até que o consenso imponha normas comuns para reprimir massiçamente os que as violam e proteger quem as respeita. Há então uma potência coletiva da multidão que assegura os obedientes e ameaça os não conformistas. Temos o embrião da soberania política, porque, segundo Spinoza, a soberania é “o direito que se define pela potência da multidão” (TP, II/17).

“Este direito que define a potência da multidão, costumeiramente chama-se poder público (imperium), e ele possui absolutamente este poder, o qual, por consenso comum cuida da coisa pública e estabelece, interpreta, e abole as leis, defende as cidades, decida a guerra e a paz. Se tal cuidado pertence a uma assembléia (concilium) composta de toda a multidão, então trata-se da democracia. Se a assembléia se compõe de algumas pessoas de escol, aristocracia. E se o cuidado da coisa pública e por consequência o poder pertence a um só, monarquia”. (31)

Não basta que a massa popular se una e se torne mais forte do que os indivíduos que a compõem. É preciso que tal poder seja reposto, de modo a poder agir com eficácia no presente e no futuro. Esta é a tarefa da institucionalização do poder. Quais são os problemas mais urgentes da institucionalização ?

1) O comando. O coletivo é uno. Mas quem o dirige? Existem muitos candidatos (TP, VII/5) “É certo…que ninguem gosta de ser governado, mas de governar. Ninguém cede voluntariamente o mando para outrem (…) É evidente que a massa do povo jamais transferiria seu direito a um pequeno número de homens, ou a um só, se ela pudesse concordar consigo mesma e se as discussões que se levantam com frequência nas grandes assembléias não gerassem sedições. A massa do povo não transferirá jamais livremente a um rei o que lhe é impossível guardar em seu poder, o direito de acabar às discussões e tomar uma rápida decisão. Se ocorre com frequência que se escolha um rei devido à guerra, porque os reis são mais eximios na guerra, está aí uma tolice porque, para guerrear com maior eficácia, consente-se à servidão na paz , supondo-se que a paz reine num Estado onde o soberano poder foi confiado a um só devido apenas pela guerra e porque o chefe mostra principalmente na guerra seu valor (alí ele é proveitoso para todos). Num Estado democrático, no entanto, tem-se o fato notável de que o seu valor é bem maior na paz do que na guerra. Mas qualquer que seja a razão pela qual se escolhe um rei, ele não pode, sozinho saber o que é útil ao Estado (…) ele precisa de conselheiros em grande número dentre os cidadãos….”. (32) Assim que se forma o poder político cada um, por ambição de mando, deseja participar dele o mais possível. Seguem-se os conflitos que decidem a sorte do coletivo.

2) A ideologia. Não basta saber quem comanda, é preciso saber o que será comandado. O que o bem e o mal? (TP, II/18). Como os homens se batem porque não têm os mesmos valores, pois cada um tende a seguir seu próprio engenho (ingenio) e cada um quer impor as suas noções aos outros, o coletivo só pode sobreviver se a autoridade politica conseguir fazer aceitar, de modo estável, um sistema comum de valores. Como os valores dependem das superstições pessais, é institucionalizada a superstição. Um atributo do Estado é decidir quais religiões são autorizadas e quais proibidas. (TP, III/10).
3) A Propriedade. Trata-se da segunda fonte de conflitos, a inveja econômica. Como disputam as mesmas coisas, quando elas só podem ser possuídas por um apenas (é particularmente o caso da terra), o grupo sobrevive apenas se o soberano definir com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um (TP, II/23). Para isto, ele precisa fazer com que sejam obedecidos o regime da propriedade. Tais problemas são péssimamente resolvidos, o que gera toda espécie de disfunção institucional, que, em prazo longo, acabam destruindo o Estado.


Disfunções da política, o primeiro principio geral:

Não se pode obrigar os homens a fazer qualquer coisa, é impossível fazê-los algo sem esperança de recompensa ou ameaça de castigo. Eles não podem ser obrigados a voar. Também a pura repressão não adianta para fazê-los crer em coisas absurdas, a não desejar o que amam, amar o que odeiam. Os soberanos necessariamente devem obedecer tais limites. É impossível alterar a natureza humana e fazer com que homens deixem de ser homens.

Aqui, é preciso recordar o monismo de Spinoza. Existe apenas uma Substância (Deus ou Natureza), da qual somos modificações. A nossa força vem da substância divina, infinita. Assim, quanto mais próximos de Deus (mais pensamos e agimos segundo as leis natuais/divinas) mais livres somos. Querer nos fazer agir ou pensar contra a nossa natureza é colocar uma força finita (a de homens, poderosos mas homens) contra uma força infinita na qual nos movemos. Um poderoso pode tentar fazer com que um indivíduo isolado atue contra sua natureza. Ele não consegue e pode apenas dobrar a lingua do seu objeto de ódio, mas jamais a sua mente. Se o indivíduo une-se a outros, com rapidez de tempo e chega à simultaneidade na união, a força coletiva é maior do que a do tirano. Assim, quando os indivíduos estão separados porque não seguem a lei e a força divinas (naturais) eles podem ser dominados pela tirania. Mas ao se unirem, aproximam-se do poder natural divino, aproximam-se do infinito. E podem vencer o tirano.

Segundo princípio geral:

Quando os dirigentes ignoram e desrespeitam a força natural divina que está neles e nos dirigidos, ultrapassando imagináriamente os limites do direito natural, catástrofes surgem para eles e para o Estado. Quanto mais reprimem, mais temor inspiram. O medo é uma tristeza (Etica, III/18-Escólio 2), que implica em ódio contra os que tememos. Se os dirigentes não sabem se manter em limites, mesmo na repressão, erguem a indignação geral, a máquina das paixões que instaurou a sociedade política, e que pode causar a sua dissolução (TP,III/9 e IV/4). Quando todos percebem que podem contar com a ajuda dos outros, porque todos estão indignados contra o mal feito contra alguns ou muitos, unem-se contra o dirigente que, no limite, é derrubado. “A Esperança é uma alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cuja saída é considerada duvidosa. O Medo, pelo contrário, é uma Tristeza inconstante nascido da imagem de uma coisa duvidosa. Se dessas afecções extraimos a dúvida, a Esperança torna-se Segurança, e o Medo desespero. Entendo uma Alegria ou uma Tristeza nascida da imagem de uma coisa passada, cuja saída foi tida por nós como duvidosa. O remorso é a Tristeza oposta ao gáudio.”

E vem a aplicação geral : “Quando se trata de medida que provoque indignação geral, obedecendo a natureza, os homens unir-se-ão contra ela, seja devido a um medo comum seja por desejo de vingança de algum malefício comum e, visto que o direito da Cidade é definido pela potência comum da multidão, é certo que a potência e direito da Cidade diminuem, pois foram fornecidas razões para que se forme uma liga conspirativa. A Cidade certamente enfrenta perigos e deve temê-los; como no Estado de natureza um homem depende mais de si mesmo quanto mais razões tem de temer, também a Cidade, pertence pertence menos a si mesma quanto mais tem a temer.” (33) Quando ocorrem as situações de medo? Em qual hora os governantes e governados sentem aquela paixão de modo decisivo? Matheron cita alguns casos ilustrativos.

1/ Uma hipótese: os homens sairam neste instante do estado natural e acabam de instituir a sociedade política, sem nunca ter a experiência anterior de um Estado. Esta hipótese é falsa, visto que não é possível, na filosofia de Spinoza, chegar ao “primeiro” instrumento técnico (o martelo) ou ao “primeiro” instrumento técnico da política ou do saber científico. É o que já se pode ler no Tratado da Reforma do Intelecto: “[…] precisamos indicar a Via ou Método por onde chegaremos a conhecer tão verdadeiramente as coisas que precisamos conhecer. Para isto é reciso observar de inicio que não haverá aqui busca ao infinito: para encontrar o melhor método pelo qual procuraríamos a verdade, não precisamos de um método para buscar este método e para buscar este segundo método não precisaremos de um terceiro e assim ao infinito. Pois daquele modo nunca chegaríamos ao conhecimento da verdade e a nenhum conhecimento. É o mesmo que ocorre com os instrumentos materiais, que daria lugar ao mesmo raciocínio. Para forjar o ferro, com efeito, é preciso um martelo e para ter um martelo é preciso fazê-lo. Para isto, um novo martelo, e outros instrumentos são necessários e, para ter aqueles instrumentos, outros ainda ao infinito. E assim poder-se-ia provar que os homens não têm nenhum poder de forjar o ferro. Na realidade puderam, com instrumentos naturais, chegar aquele invento, embora penosamente e de maneira imperfeita, vencendo tarefas com procedimentos fáceis. Uma vez tendo-as acabado, executaram outras mais difíceis com menor esforço e mais perfeitamente e assim indo por gráus dos trabalhos mais simples aos instrumentos, destes instrumentos a outros trabalhos e instrumentos, num progresso constante, e chegaram a executar tantos trabalhos difíceis, com pouco esforço. Assim também o intelecto com sua força natural produz para si mesmo instrumentos mentais que aumentam a sua força para executar outros trabalhos intelectuais, desses últimos ele extrai outros instrumentos, ou seja, o poder de empurrar para mais longe sua pesquisa, e continua assim a progredir até chegar ápice da sabedoria”. (34)

Assim como não existe a regressão ao “primeiro martelo” ou ao “primeiro método”, também não existe regressão à “primeira coletividade política”. Com isto, Spinoza dá um tiro mortal nos programas conservadores que indicam uma “comunidade” perfeita no início da Humanidade. Este coletivo jamais existiu. Com prudência política, pode-se apenas recolher e aperfeiçoar no presente e no futuro o que os homens fizaram no passado. E com o monismo, não existe fora da natureza nenhum modelo ou paradigma da “boa” sociedade política. Nota-se que o neo-platonismo ou mesmo o platonismo são descartados por Spinoza neste passo. Se temos um coletivo que nunca possuiu Estado ou política, qual soberania ele dará a si mesmo? Depende do regime a que estavam habituados “antes” de retornar ao estado de natureza. Os judeus habituados à escravidão no Egito, não podiam viver em democracia. (TTP, V).

O Capítulo V, do Tratado Teológico Político apresenta razões gerais do poder político e logo a seguir deduz as consequências para os Hebreus recem saídos do Egito. “A sociedade é útil e necessária no mais alto ponto, não apenas porque protege contra os inimigos, mas também porque ela permite reunir um grande número de comodidas. Se os homens não desejassem se ajudar mútuamente, a habilidade técnica e o tempo lhes fariam igualmente falta para manter sua vida e conservá-la tanto quanto possível. [Recordemos a Ética : “o esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”] . Ninguém teria o tempo e as forças necessárias se fosse preciso arar, semear, colher, moer, cozer, tecer, costurar e efetuar muitos outros trabalhos úteis à manutenção da vida. Isto, para nada fazer das artes e ciências, que são supremamente necessárias para a perfeição da natureza humana e para sua felicidade. Vemos, com efeito, que os que vivem como barbaros, sem civilização, conduzir uma vida miserável e quase animal, e no entanto o pouco que eles possuem, miseravel e grosseiro, eles só o conseguem prestando-se mútuo socorro. Se homens fossem dispostos pela natureza de modo que só desejassem o que ensina a verdadeira Razão, a sociedade não precisaria de lei nenhuma, bastaria esclarecer absolutamente os mesmos homens com ensinos morais para que eles mesmos fizessem e com alma liberal o que é verdadeiramente útil. Mas é bem diferente a disposição da natureza humana; todos observam seu interesse, mas não seguindo o ensino da reta razão ; o mais frequente que os homens sejam arrastados por seu apetite apenas de prazer e as paixões (que não se preocupam com o futuro e só dão conta de si mesmas) que eles desejam algum objeto e o julgam útil. Daí que nenhuma sociedade pode subsistir sem um poder de comando e uma força, e por conseguinte sem as leis que moderam e constrangem o apetite do prazer e as paixões sem freio. Contudo a natureza humana não suporta ser constrangida absolutamente, e como diz Seneca o Trágico : “ninguém exerceu muito tempo um poder violento, um poder moderado perdura”. Enquanto, com efeito, os homens agem apenas por medo, fazem o que é mais contrário à sua vontade, e não consideram de nenhum modo a utilidade e a necessidade da ação, mas só se preocupam em salvar sua cabeça e não se expor aos suplícios. Bem mais, é-lhes impossível não sentir prazer com o mal e com o prejuízo do governante que tem poder sobre ele, mesmo em seu detrimento, de não lhe desejar malefícios e fazer-lhe tanto mal quanto possam. Nada existe mais difícil enfim, do que arrancar dos homens uma liberdade , após tê-la concedido.

Segue-se que toda reunião humana deve, se é possível, instituir um poder que pertença à coletividade de modo que todos sejam levados a obedecer a si mesmos e não aos seus similes. Se o poder pertence apenas a alguns, ou a um só, este último deve ter algo superior à natureza humana, ou pelo menos deve se esforçar para fazer com que o vulga creia nisso. Em segundo, leis deverão ser estabelecidas em todo Estado de modo que os homens sejam contidos menos pelo medo do que pela esperança de algum bem particularmente desejado. Assim, cada um cumprirá seu mister com ardor.Finalmente, dado que a obediência consiste no fato de se executa ordens por submissão apenas à autoridade do chefe que comanda, vê-se que ela não tem lugar nenhum numa sociedade onde o poder pertence a todos e onde as leis são estabelecidas por consentimento comum. Seja numa sociedade assim, pu em outra sociedade, as leis aumentem em número ou diminuam, o povo permanece sempre livre igualmente, pois não age por submissão a autoridade alheia, mas pelo seu próprio consentimento. Ocorre algo muito diferente quanto um só detem o poder absoluto. Então, todos, sem nenhuma exceção, executam as ordens do poder por submissão à autoridade de um só. A menos que os homens sejam amestrados a desde o princípio a ficarem presos à palavra do chefe que comanda, será muito difícil para ele, em caso de necessidade, instituir leis novas e arrancar do povo uma liberdade concedida certa vez.

Depois dessas considerações gerais, voltemos à organização política dos Hebreus. Quando sairam do Egito, eles não eram obrigados pelo direito de nenhuma nação, e podiam estabelecer leis novas segundo melhor lhes aprouvesse, ou seja, constituir um direito novo, fundar seu Estado onde escolhessem e ocupar as terras que desejassem. Eles não estavam preparados para estabelecer regras de direito e exercitar o poder coletivamente pois todos possuiam um engenho grosseiro e deprimido pela servidao sofrida. O poder precisou ficar, pois, nas mãos de um só, capaz de comandar os outros, de constrangê-los pela força, de prescrever enfim leis e interpretá-las. Este poder, Moisés pôde fácilmente continuar a detê-lo porque estava acima dos outros por uma virtude divina como ele persuadiu o povo e mostrou por numerosos testemunhos (Exodo, capitulo 14, último versículo, [“E Jeová salvou Israel naquele dia das mãos do egípcios; e Israel viu os egipcios mortos no mar. E Israel viu a grande obra que Deus fez contra os egipcios, e o povo temeu Jeová: e eles acreditaram em Jeová e no seu servo Moisés”] e capítulo XIX, versiculo 9). Ele estabeleceu portanto, e impôs regras de direito pela virtude divina que o distinguia. Mas tomou o maior cuidado de fazer o povo cumprir o seu ofício, menos por medo do que expontâneamente. Duas razões principais o constrangeram : de início, a insubmissão natural do povo (que não suportava ser dominado apenas pela força) e a ameaça de guerra que exigia, para ser feliz, que os soldados fossem conduzidos mais pela persuasão do que pelos castigos e ameaças. Desse modo, com efeito, cada um se esforçou de se distinguir pela coragem e grandeza de alma do que escapar apenas do suplício”.

Como no estado de natureza “absoluto” hipotético, ninguém era superior a outros, a primeira suposta forma de regime soberano é a democracia. No estado de natureza ninguém comanda duravelmente ninguém, ninguém se impõe pela sua força ou prestígio. A ambição de mandar e a inveja está em todos, sem nenhum constrangimento, impede que a autoridade seja dada apenas a um só ou a alguns. Logo, apenas a assembléia inteira do povo. A democracia é a solução mais simples, mais lógica, “mais natural” (TTP, XVI)

Mesmo os hebreus, na situação posterior ao Egito, experimentam as bases da ordem democrática. “Dado que os Hebreus não transferiram para ninguém o seu direito, mas todos eles, como numa democracia, renunciaram ao seu direito, e clamaram numa só voz que fariam tudo aquilo que Deus dissesse (sem nenhum mediador expresso), segue-se por conseguinte em virtude desse pacto, que todos ficaram completamente iguais, no direito de interpelar Deus, de receber e de interpretar leis e de participar em todas as tarefas da administração do Estado”. (TTP, Capítulo 17). (35) No Estado proposto pelo filósofo, as formas democráticas exigem a igualdade plena dos cidadãos. (36) Para perceber o radicalismo da idéia, precisamos tecer alguns considerandos sobre o direito natural e discutir as suas teses sobre os vínculos dos homens com Deus e entre si.

A doutrina de Spinoza é contrária à teoria de Hobbes. O próprio pensador enunciou as principais oposições entre ambos: “a diferença consiste em que eu mantenho sempre o direito natural e que só concedo numa cidade qualquer direito ao soberano sobre os dirigidos na medida em que, pela potência, ele é mais forte do que eles; é a continuação do estado de natureza”. (37) Ao contrário de Hobbes, no instante em que se institui a soberania nenhum indivíduo abdica do direito natural em prol de um arbitro posto acima da reunião societária. A igualdade entre dirigidos e dirigentes é garantida, modificando-se apenas o âmbito e a força das pessoas e funções. No Estado democrático “ninguém transfere o seu direito natural para um outro, a ponto deste nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria da sociedade , de que ele próprio faz parte. Portanto, nessa medida, todos se mantêm iguais, tal como acontecia antes, no estado de natureza

Spinoza, longe de exigir o combate às paixões, ou de recusar a sensibilidade humana, afirma a preponderância das mesmas na vida e na política. A paixão do medo não será atenuada por uma ascese ou exercício racional. Ela apenas será afastada com o aumento da potência de uma outra paixão, a trazida pela alegria. Para o pensador judeu se quisermos pensar a política precisamos reunir no intelecto os extremos da tristeza e da alegria. Quando temos a imagem de algo o consideramos presente, mesmo que ele não exista. E o imaginamos como passado ou futuro, apenas enquanto a sua imagem está unida à imagem do tempo pretérito ou que virá. Considerada em si mesma, a imagem de algo é a mesma, seja unida ao passado, seja ao futuro, ou ao presente. Em qualquer daquelas situações, a alegria ou tristeza será a mesma. Coisa passada ou futura: enquanto somos ou seremos afetados por ela, se algo que comemos nos fez mal, ou nos fará, etc. Nosso corpo não experimenta nenhuma afecção que exclua a existência da coisa, porque ele é afetado pela imagem da coisa, como se ela estivesse presente. Como temos várias experiências, quando consideramos uma coisa passada ou presente flutuamos e não conseguimos nos manter firmes, vendo como duvidosa a resolução do dilema que nos ameaça. As afeccões nascidas das imagens que flutuam em nós, também flutuam segundo as imagens de coisas diversas, até que tenhamos adquirido alguma certeza para a solução do nosso relacionamento com a coisa. Assim, podemos conhecer a esperança, o medo (Metus), a segurança (Securitas), o desespero, o contentamento (Gaudium) e o remorso. “Esperança é alegria inconstante nascida da imagem de algo futuro ou passado cuja saída consideramos duvidosa. O medo, pelo contrário, é uma tristeza inconstante nascida igualmente da imagem de algo duvidoso. Se destas afecções extrairmos a dúvida, a esperança se transforma em segurança, e o medo se transforma em desespero. Falo de uma alegria ou tristeza nascidas da imagem de algo que nos afetou de medo e de esperança. O gaudio é uma alegria nascida da imagem de algo passado cuja saida foi considerada por nós como duvidosa. O remorso é a tristeza oposta ao gáudio”.

A partir desse conceito de flutuação da alma, vejamos o que enuncia o Tratado Teológico-Político: “Se os homens fossem capazes de governar toda a conduta de sua vida por um objetivo regrado, se a fortuna lhes fosse sempre favorável, sua alma estaria livre de toda superstição. Mas como eles estão sempre postos num estado incômodo que não lhes pemite tomar nenhuma resolução razoável, como eles flutuam quase sempre miseravelmente entre a esperança e o medo, por bens incertos que não sabem desejar com medida, seu pensamento abre-se sempre à mais extrema credulidade. Ele oscila na incerteza. O menor impulso o joga em mil direções diversas, e as agitações da esperança e do medo aumentam mais a sua inconstancia. De resto, observemos os homens em outros encontros, nós os veremos confiantes no futuro e cheios de jactancia e orgulho”. E novamente no Tratado Teológico-Politico : “Ninguém viu os homens sem notar que, ao estarem na prosperidade, todos se gabam, tão ignorantes quanto possam ser, de uma sabedoria tal que julgariam uma injúria receber um conselho. No dia da adversidade, surpreendidos, não sabem qual partido escolher: vemos que eles mendigam ao primeiro que aparece, e por mais inepto, absurdo e frívolo que se imagine um conselho assim, eles o seguem cegamente. Mas logo, a partir da menor aparência, recomeçam a esperar um futuro melhor ou temer as piores infelicidades.

Que lhes ocorra, com efeito, quando estão presas do medo, algo que lhes recorde um bem ou mal passados, eles dizem logo que o futuro será propicio ou funesto. E cem vezes enganados pelo evento, eles não deixam de acreditar nos bons e maus presságios. Se testemunham um fenomeno extraordinário e que os fere de admiração, aos seus olhos trata-se de um prodígio que anuncia a colera dos deuses, do Ser Supremo. E não dobrar sua colera através de preces e sacrificios, é uma impiedade para estes homens conduzidos pela superstição e que desconhecem a religião. Eles querem que toda a natureza seja cumplice de seus delírios e ficções ridículas, eles a interpretam de mil modos maravilhosos”. O medo é desejo de evitar o mal maior que tememos por outro menor. (Ética, 3, 39). Assim, definem-se todos os passos seguintes na Ética, como a audácia, desejo que excita alguem a fazer alguma ação correndo o perigo que os seus semelhantes temem enfrentar. A pusilaminidade é o desejo reduzido pelo medo do perigo que as pessoas semelhantes ousam enfrentar. A pusilaminidade é só o medo de um mal que a maioria não costuma temer. Por isto, Spinoza, não a coloca entre as afecções do desejo. A explica apenas, porque ela se opõe realmente à audácia, tendo em vista o desejo que ela reduz. “A consternação diz-se daquele cujo desejo de evitar um mal é reduzido pelo espanto do mal de que ele tem medo. Consternação seria um modo de pusilaminidade. Mas ela nasce de um duplo medo e pode ser definida mais comodamente como o medo que contem de tal jeito um homem ferido de estupor ou flutuante, que ele não pode afastar o mal de si. Digo ferido de estupor, enquanto concebemos seu desejo de afastar o mal como reduzido pelo espanto. Digo flutuante, enquanto concebemos este desejo como reduzido pelo medo. Medo de um outro mal que também o atormenta. Donde vem que ele não saiba qual dos dois contornar”.

É útil aos homens atar relações entre si, forjar liames que os tornam mais aptos a constituir, juntos, um só todo e fazer sem restrições o que contribui para afirmar as amizades. (Ética, livro 4, capitulo 12). A concórdia, nasce da justiça, equidade, honestidade. Os homens suportam dificilmente além do que é iniquo e injusto, o que se considera vergonhoso. Eles suportam mal testemunharem o desprezo dos costumes recebidos no Estado. Na mesma Ética, livro 4, capítulo 16 lemos : “a concórdia, ordinariamente tem por origem o medo, mas sem boa fé (sed sine fide)”. Acrescentemos que o medo nasce da impotência da alma e não pertence ao uso da razão, não mais do que piedade, embora esta última tenha a aparência da moral. Retenhamos a expressão, “sem boa fé”. Ela é estratégica para entender a tese de Spinoza, eivada de maquiavelismo, na questão do pacto social e do direito natural. O pacto, para ser válido, e durável, deve seguir algumas condições. “É uma lei universal da natureza que ninguém renuncia ao que considera ser um bem, salvo na esperança de um bem maior, ou no medo que resulte indiretamente num prejuizo. Ninguém aceita um mal, a não ser para evitar um pior, ou na esperança de um bem. Trata-se daquilo que ele considera melhor ou pior, sem necessariamente o seja de fato. Esta lei está escrita em caracteres tão fundos na natureza humana, que é preciso considerá-la entre as verdades eternas, das quais ninguem pode fugir”. Consequência: ninguém pode prometer, sem engôdo, alienar-se do direito do qual goza em todos os domínios, (38) nem se decidir a manter esta promessa, a menos que tenha medo de um mal maior ou esperança num bem. “Um ladrão me constrange a lhe prometer a lhe entregar tudo o que é meu. Meu direito natural é determinado apenas pela minha força. Se posso escapar do ladrão por uma promessa enganosa, estou autorizado pelo direito natural. No meu interior, posso perfeitamente não ter a intenção de manter a promessa. Ou se prometo a alguém que passarei vinte dias sem comer. Se percebo a estupidez desta promessa, estou na obrigação de escolher entre dois males, o menor”. Dentre as fontes de Spinoza, neste passo, uma é certa: Maquiavel, na Primeira Década de Tito Livio, livro 3, capítulo 42: “não existe vergonha em violar as promessas arrancadas pela força. Serão rompidas sem desonra as convenções pelas quais se empenhou a nação todas as vezes que a força que a obrigou a contratá-la não existe mais”.

No Artigo 5 do capitulo 1 do Tratado Politico, pode-se ler que as relações entre os homens ou a unidade em forma social trazem o selo de origem das paixões. A piedade, ambição de glória, ambição de dominação, inveja. “Só pelo fato de sua constituição, eles lamentam os seus semelhantes infelizes, e os invejam quando felizes, inclinando-se à vingança e pouco à misericórdia, cada um querendo fazer com que os demais adotem a sua regra pessoal de vida, aprovar o que aprova, recusar o que rejeita. Tais homens querem, assim, ser os primeiros, entram em rivalidade, e tentam, na medida de seu poder, esmagar uns aos outros. O vencedor, após a luta, se gloria mais de ter causado prejuízo ao outro, do que ter ganho algo para si. Sem dúvida, assim agindo, todos permanecem convictos de que a religião lhes ensina algo diferente. Ela ensina a amar seu próximo como a si mesmo, isto é, se fazer tão ardente campeão do direito do outro quanto do seu. Mas esta convicção, como vimos, não tem efeito sobre os sentimentos. No máximo, ela influi na hora da morte, quando a doença triunfou sobre os sentimentos e o ser humano jaz inerme, ou nas igrejas, onde os homens não têm relações entre si. Mas ela não prevalece no tribunal nem nas casas dos poderosos, enquanto a sua necessidade seria certamente sentida. É verdade que a razão é capaz de combater sentimentos e moderá-los consideravelmente. Entretanto, a via indicada pela razão nos pareceu muito árdua. Não iremos, pois, acariciar a ilusão de que seria possível conduzir a multidão, nem os homens públicos, a viver segundo a disciplina exclusiva da razão. Neste caso, estaríamos sonhando com uma poética da idade do ouro, uma história fabulosa”. As paixões que definem a política têm origem comum naquilo que Alexandre Matheron chama, seguindo o próprio Spinoza, “imitação afetiva”, deduzida na Ética, 3, 27. O item imediatamente anterior à proposição 27, refere-se ao orgulho, alegria que nasce do fato de que um indivíduo se estime de modo mais do que o justo, ele se considera melhor do que é. Aliás, o orgulho é definido como delírio, porque nele o homem sonha com os olhos abertos. Nele o indivíduo julga poder tudo o que abarca a sua imaginação. A partir daí, Spinoza diz que “da imaginação que uma coisa semelhante a nós (e que antes nos era indiferente) prova por nós algum afeto, também nós experimentamos, por isto mesmo, um afeto semelhante.” Para demonstrar essa tese, Spinoza indica que as imagens são afeccões do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se fossem presentes a nós. Estas ideias envolvem a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo (simul) a natureza presente de um corpo exterior. Se a natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo, a idéia do corpo exterior que imaginamos envolverá uma afecção de nosso corpo semelhante à do corpo exterior. Por conseguinte, se imaginamos alguém semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolverá uma afecção semelhante de nosso corpo. Pelo próprio fato de imaginarmos que alguma coisa semelhante a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção semelhante à sua. Se, ao contrário, odiássemos uma coisa semelhante a nós, experimentaríamos na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua. E no escólio: “Esta imitação das afecções, quando ela ocorre diante da tristeza, chama-se comiseração, mas se é à respeito de um desejo, ela torna-se emulação, que nada mais é que o desejo de uma coisa engendrado em nós pelo motivo de que imaginamos que outros seres semelhantes a nós também a desejam”.

Indica um comentador italiano de Spinoza (Tiziano Salari “Spinoza e il mimetismo del desiderio”) (39) a grande superioridade da intuição spinozana sobre as cartesianas, a de sujeitar as paixões, que eram discutidas como separadas uma da outra, a um principio unificador: o desejo (Paixões da almacupiditas), como “a própria essência do homem, enquanto ela é concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer, dado nela”. Desejo é o apetite com consciência de si mesmo, é o fazer coisas que sirvam para a conservação de si. (Cf. Ética, 3, Definição das Afecções). O mimetismo do desejo funda a comunidade política e nesta fundação o medo adquire relevo. Segundo Lucia Nocentini (“I fondamenti naturali della civitas. La concezione spinoziana dello Stato, individuo di individui”), a união estatal forma uma individualidade, só distinta das individualidades que a compõem em quantidade e força. O indivíduo Estado (imperium) e o complexo da individualidade político social (Civitas) se cortam, segundo um duplo relacionamento. Ao mesmo tempo que as subjetividades concretas determinam a existência do Estado e o setor governante e institucional, segundo uma linha ascendente, de modo paralelo os institutos descem até às subjetividades concretas segundo uma comunicação biunivoca de cujo equilíbrio dependem a sobrevivência e a estabilidade de todo o corpo social. (40) Há uma relação de reciprocidade : “Para conservar a si mesmos os individuos precisam uns dos outros; devem pois ser conduzidos, através da busca de seus próprios interesses, a desejar a conservação do Estado” (Tratado Político, VII, 4, 22; VIII, 24, 31; X, 6). Sua constituição natural, diz Spinoza, conduz os homens a procurar apaixonadamente o interesse próprio e a julgar a justiça das leis com parcialidade, segundo elas contribuam ou não para preservar o crescimento de seus bens. Sabe-se também que eles só tornam-se campeões da causa alheia na medida em que acreditam, por este meio, defender seus próprios negócios. E “reciprocamente o Estado, para se conservar, deve tender a conservar os individuos, garantindo-lhes a segurança que é a condição fundamental da obediência civica: em um Estado dominado pela anarquia, ou sujeito à potência dos seus inimigos, desaparece a lealdade. (Tratado Político., X, 9-10; e todo o cap. VI)” . Em verdade, se um corpo político pode assegurar sua eterna conservação, diz Spinoza, quando analisa a aristocracia, será necessariamente aquele cuja legislação, uma vez estabelecida sob forma conveniente, permanece protegida contra todo atentado. Pois a legislação é a alma do Estado. Se ela dura, o Estado de seu lado preserva-se. Ora, qual deve ser a legislação para resistir a todas as mudanças? Ela deve se apoiar ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a disposição apaixonada própria aos humanos. Se ela só tivesse o sustento da razão, seria fraca e sucumbiria facilmente. Jogo das paixões. Um sentimento é vencido por outro. “Não se vê, com frequência, o medo da morte ser vencido pela violência de um desejo aos bens externos? Ou então alegar-se-ia, os que fogem com medo do inimigo não seriam mais detidos por nenhum outro medo? Eles se precipitam nos rios ou penetram num braseiro, para evitar o ferro do inimigo. Uma nação pode ser bem organizada e suas leis excelentes, tanto quanto se quiser. Entretanto, assim como demonstra a história, os habitantes são por vezes tomados (em situações críticas para o Estado de um terror pânico (terrore quodam panico) que nada mais enxerga senão o medo (metus) que se experimenta no presente. Sem nenhuma consideração pelo futuro, nem pela simples legalidade, todos os olhos se dirigem para um homem de guerra famoso. Ele é desligado da obediência comum às leis, decisão desastrosa lhe prolonga o seu comando ao exército e a salvação coletiva é totalmente posta em suas mãos. A resposta a toda esta objeção do pânico, é fácil. Numa coletividade pública bem organizada, um terror daquele gênero não teria nascido sem motivo verdadeiro. De modo que o terror e a confusão, se estalam numa tal república, só decorreriam de uma causa, imprevisível mesmo para a maior sabedoria”.

O corpo político, como os demais corpos vivos é sujeito a coisas externas e à instabilidade interna. (41) Estas ações podem aumentar o seu conatus ou dominuí-lo. Este é o tema do capítulo 10 do Tratado Político. “Desde que os homens…se fazem dirigir pelas paixões mais do que pela razão, uma multidão de pessoas é conduzida, por natureza, a unir-se com numa só mente, não dirigida pela razão, mas por algum afeto comum, ou seja (como dissemos no artigo 9 do capitulo 3), por uma esperança comum, ou medo ou desejo, de vingar um dano. Porque de fato o medo da solidão é ínsita em todos os homens, do momento em que nenhum deles, por si só, tem força para defender-se e dar-se o necessário para viver, assim, os homens tendem, por natureza, ao estado civil, e não ocorre nunca que eles o destruam totalmente” (TP, VI, 1).

Quais paixões entram em jogo no espaço político quando este último se instaura? A piedade, a ambição da glória, a ambição do domínio e a inveja. Todas possuem uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução encontra-se no livro 3 da Ética. (42). Quando imaginamos —a imaginação, como vimos, possui estatuto privilegiado na política de Spinoza (43)— que um ser igual a nós experimenta certo sentimento, também o experimentamos. Se vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor e queremos aliviá-lo. Se o fazemos com sucesso, ele se alegra e nos alegramos com ele, ou melhor, nos alegramos com a imagem que está em nossa mente de que somos a causa de sua alegria. Tal sentimento é agradável e desejamos repetí-lo, o que nos joga na tentativa de sempre ajudar os outros. Aqui temos a base da busca incessante da glória, uma ambição primitiva. Mas se queremos ajudar, também queremos atingir nossa própria felicidade. E isto pode ser algo contraditório. Entre os desejos dos demais e os nossos, imaginamos que os últimos são eminentes. Assim, de pessoas que fazem o bem aos outros desejamos, como segundo passo, convertê-los aos nossos desejos e tentamos obrigá-los a gostar do que gostamos e odiar o que odiamos. A ambição de glória se transmuta em ambição de mando, com a sua corrente de males como a intolerância, o pior deles na vida em comum. Se não conseguimos dobrar o desejo alheio em proveito do nosso, passamos a odiar quem assim resiste a nós. Se conseguimos vencê-lo, caso ele se aproprie de uma coisa que prezamos e se alegre com isso, desejamos a sua posse para nós mesmos e dele retirar o gozo. Estamos jogados em plena inveja, a qual se manifesta sobretudo nas matérias econômicas. Quando conseguimos privar o indivíduo dos bens que invejamos ele se entristece, temos dele piedade e o círculo das paixões recomeça, definindo cada vez mais ódio, inveja, desejos em relações complexas que se tornam como que elementos a priori de uma vida comum.

A quantidade de paixões em jogo na política obscurece alguns fatos essenciais para a manutenção da república, e nela a racionalidade ocupa lugar mínimo. Se a corrente apaixonada conduz ao inferno da intolerância, inveja, mandonismo, o único passo eficaz para atenuar o círculo enunciado acima e que permite entender a instauração pública também encontra-se na paixão. Os indivíduos concordam em viver na comunidade porque todos têm medo. Este ponto é comum em Hobbes e Spinoza. (44) O medo impulsiona, no plano da imitação afetiva, as pessoas a se indignarem ao perceber que alguém prejudica um ser que é seu igual. Sentimos indignação por mimesis dos sentimentos da vítima, como vimos acima. Se, no estado de natureza um homem sente fome, um ou vários, por piedade ou ambição de glória o ajudam. Se o auxilio é eficaz, a piedade ou ambição de glória se transformam em dominação e inveja. Define-se melhor a agressividade. E os que enxergam esta agressividade se indignam e começa o ciclo das indignações que movem os indivíduos. Nele, ou alguém é visto como vítima da agressão ou agressor que merece indignação. Neste circuito violento cada um teme o outro e quer obter ajuda de todos os demais. O limite do circulo encontra-se na esperança de todos no auxilio do coletivo inteiro contra seu direto agressor ou suposto inimigo. Assim, todos imaginam que instaurar uma potência coletiva possibilita o seu melhor socorro. Note-se que a igualdade é um pressuposto da instauração republicana, segundo Spinoza. Como afirma Matheron, no texto que sigo ao pé da letra, “a cada vez que dois indivíduos entrarão em conflito, cada um deles clamará pela ajuda de todos os demais, e cada um dos outros, respondendo ao chamado e imitando os sentimentos de alguns dos adversários que será o mais semelhante a ele (Matheron sublinha), se indignará e lutará contra o que lhe parecerá menos: contra aquele cujos valores serão mais divergentes dos seus ou que possuirá mais coisas dos ques possuidas por ele. O adversário que mais se afastar da norma majoritária (o que menos se parecer aos outros) será pois esmagado e dissuadido de recomeçar”. (45) Esse é o primeiro passo para a instauração da república. A igualdade define a base do Estado. Mas tal realidade apresenta problemas, todos vinculados às paixões, de árdua resolução. A primeira aporia reside no mando. O coletivo é força única, superior aos indivíduos. Quem dirige aquela força? Muitos desejam comandar e poucos obedecer. Com a força coletiva, a ambição do mando se expande e com ela a inveja do poder usufruido pelos demais. Neste passo, não se trata apenas de impor aos outros os desejos e opiniões próprios ou de invejar seus bens materiais. Agora a paixão se complexifica, pois além dos desejos primordiais, ela é carregada de aspectos políticos. Como resolver as paixões contraditórias que se tornaram assim saturadas de sempre novos elementos ? A solução torna-se ainda mais difícil porque não se trata apenas, na comunidade, de saber quem manda, mas o que ele manda. Torna-se preciso saber o que é o bem e o mal para a república. Assim, aparecem as lutas sobre as opiniões e para impôr de modo estável, ao todo idéias éticas, um sistema comum de valores. Como neste momento primitivo da república todos são dominados pela imaginação e não desenvolveram a racionalidade conceitual, todos pensam segundo os padrões imaginativos, todos são supersticiosos. Trata-se de escolher dentre as superstições particulares ou grupais a mais forte, a que será institucionalizada pelo coletivo em forma de culto e noções religiosas autorizadas. Mas não ficamos apenas no plano da imaginação religiosa. O mais árduo é encaminhar a questão da propriedade, pois uma das fontes dos conflitos reside na inveja econômica. Os homens disputam as mesmas coisas quando elas não podem ser possuidas por um deles apenas (a questão da terra é a mais grave). A república só permanece se o soberano define com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um e se ele impõe um regime da propriedade.

Todos os problemas mencionados acima, pensa Spinoza, são resolvidos sempre de modo precário. O filósofo, que não pensa exibir um modelo ideal do Estado, indica alguns princípios de prudência política para garantir a estabilidade republicana. O primeiro princípio prudencial, do qual já falamos, diz que os governantes devem ter consciência de que os homens, quando entram no plano político, não renunciam aos seus direitos naturais (como vimos na carta de Spinoza a Jarig Jelles) e que existem limites para o seu mando. Como só entram no campo da política movidos pelas paixões e não por um cálculo racional (ao contrário do que expõe Hobbes) os indivíduos só obedecem ou desobedecem se forem incentivados pelo medo de castigos ou esperança de recompensas. Mas tanto o medo quanto a esperança devem ser relativos a algo que esteja ao seu alcance. Não é possível obrigar os dirigidos a voar (na época isto era uma ordem impossivel de ser cumprida) ou a acreditar naquilos que lhes parece absurdo ou a não querer o que amam ou amar quem lhes faz mal e odiar os quem lhes causa o bem. Resumo de Matheron: “é impossível ir contra a natureza humana e fazer com que os homens deixem de serem homens”. Se os governantes esquecem essa regra prudencial e exigem o impossível dos dirigidos, eles causam medo neles. Mas o medo traz a tristeza e esta produz ódio pela pessoa que tememos. Se os dirigentes não assumem a prudência máxima na repressão (sobretudo neste caso, em que ela é desprovida de razões) o medo se transforma em ódio e indignação contra eles. Ou seja: o mecanismo que serviu para edificar a república serve também para dissolvê-la. Quando os dirigidos não percebem nenhuma segurança na política e constatam as injustiças mútuas impunes e as injustiças dos dirigentes também impunes, sendo os dirigentes arrogantes e orgulhosos, eles não aceitam mais obedecer e sua indignação está pronta para se transformar em revolta que pode destituir não só os dirigentes mais dissolver o Estado.

Spinoza analisa as formas de regime que poderiam impedir o retorno ao estado de natureza como resultado da arrogância ou imprudência dos governantes. No Tratado Político, o filósofo discute a monarquia, a aristocracia, a democracia mostrando as suas forças e fraquezas. Para que o regime político seja eficaz e se mantenha (o ensino vem de Maquiavel), é preciso que ele consiga se auto-regular, remediando os erros dos governantes e do povo. São desse tipo as medidas prudenciais que podem servir para a diminuição dos conflitos. No setor econômico Spinoza propõe a nacionalização do solo. “Nacionalização não significa coletivização. O que Spinoza diz é que a terra pertencerá ao Estado e que este a alugará aos particulares, os quais a explorarão individualmente e venderão os produtos no mercado. Eles serão locatários, não proprietários. A diferença é enorme. Assim será evitada a imobilização dos capitais na compra de terras” (Matheron). Deste modo, “o acesso ao solo será facilitado ao máximo. Mas será facilitado sob uma tal forma que a terra, deixando de ser objeto de um investimento financeiro, deixará ao mesmo tempo de ser objeto de um investimento afetivo” (idem). Note-se que a marcha do pensamento político de Spinoza vai da igualdade natural à igualdade jurídica com medidas de prudência que permitam sempre repor a igualdade. As medidas sobre a apropriação do solo marcam este ponto. A igualdade não é atribuida ao Estado e ao soberano de modo absoluto e total. “A oposição do ´direito de natureza´ (jus naturale) e da ´lei da natureza´ (lex naturalis), que constitui um dos núcleos da filosofia política hobbesiana (Leviathan, Cap. 14) é anulada por Spinoza. Neste, vida e razão, longe de se oporem, mutuamente se enriquecem”.(46)

Como vimos, o perigo de dissolução do Estado é mais interno do que externo, devendo-se sobretudo à imprudente arrogância dos dirigentes que rompem a igualdade civil e política em seu proveito. Como, para Spinoza, o princípio e fundamento da virtude e da vida é a força possuida por todos os indivíduos de conservar a si mesmos e se expandir, o regime que mais garante esta segurança e expansão é a democracia. “O Estado democrático é a resposta racional às necessidades naturais. Na sua constituição são determinantes quer a razão quer a natureza. Mas só com a razão se constrói uma verdadeira solidariedade, só ela estabiliza. Por ela percebemos que os diferentes poderes nada mais são do que manifestações parcelares de uma potência comum”. (47) Conditio sine qua non dessa forma de Estado é a idéia spinozana do divino e da natureza. Deus, ou natureza, é a substância única, com infinitos atributos, dentre os quais nós conhecemos a extensão e o pensamento (que nos constituem). Os atributos combinam-se de infinitos modos, o que é a nossa efetividade, pois somos indivíduos que existem naqueles atributos. Deus é imanente em toda a natureza e em nós. Não existe entre nós e Deus nenhuma transcendência e todos estamos —se fosse possível usar esta imagem— situados numa igual distância em relação à natureza comum e à divindade. A democracia é o regime mais natural porque não existe, nos vínculos entre a natureza e nós nenhuma hierarquia metafísica, ao modo grego, cristão ou judaico. Essa idéia da igualdade causou um abalo que persiste até hoje nas teorias políticas do Ocidente. Não por acaso o pensamento spinozano jaz sob as teses democraticas das Luzes. (48)

Ao contrário do pensamento que afirma a igualdade radical dos entes humanos, na perspectiva spinozana, as doutrinas cristãs ergueram um sistema hierárquico que postula a desigualdade como fundamento e alvo do político.Um dos maiores pilares do pensamento católico é Tomás de Aquino. Nele, a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”. (49) Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico. (50) É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa.(51) A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino. Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o simile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”.Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1). Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna. (52) A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus.

Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n'ai pas eu besoin de cette hypothèse”. O tema da secularização cultural e política produziu oceanos de livros e não pode ser discutido aqui. Mas certamente é preciso analisar, quando falamos da igualdade, a quebra com os pressupostos religiosos aristocráticos e a nova ordem democrática que se instaura. Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dant no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”. (53)

Spinoza e a Razão de Estado

Visto que o mundo europeu se expande no século 17, e que as fronteiras nacionais são melhor definidas pelos Estados, o problema da igualdade entre os cidadãos torna-se agudo. A hierarquia, a que define precedências no feudalismo e nos primeiros inícios do Estado, tomba a cada avanço do poder real. O poder assume uma nova ordem de referências e novos privilégios, todos referidos ao comando do Rei. Dos impostos à justiça, desta às normas legais, incluindo-se o poder militar e de polícia concentram-se no ministério que responde diretamente ao soberano. Embora renitentes, as formas aristocráticas cedem lugar à ascensão burguesa e inicia-se uma espécie de condominio do Estado pelos vários segmentos sócio-econômicos e políticos. Se o poder do rei é sinônimo de universalidade que abarca todos os particulares, coloca-se o problema da relativa distância de cada indivíduo ou setor em relação ao núcleo do poder. Desloca-se a hierarquia que se fundamenta no sagrado, o qual por sua vez sancionou, autorizou e exigiu as três ordens feudais (clero, nobreza, os comuns). Os nexos entre dirigidos e governantes se ordenam cada vez mais horizontalmente : quanto mais próximo da corte, mais influência, quanto mais distante, menor capacidade de influir. A hierarquia cede, lenta e seguramente, à distinção entre capital e provincia. Na primeira, instala-se a cabeça do Estado e o aparato diplomático, administrativo, militar, policial e intelectual (a máquina de propaganda do monarca). (54) Na segunda, fica a resistência à máquina do poder.

Tomemos um campeão do conservadorismo, Alexis de Tocqueville. Ele analisa o crivo da igualização crescente na França e na Europa como uma das marcas essenciais das Revoluções Francêsa e Americana. No Ancien Régime o Estado existe em parâmetros diferentes dos encontráveis na Idade Média. A realeza possui “outras prerrogativas, tem um outro lugar (…) é a administração do Estado que se amplia para todas as partes sobre os restos dos poderes locais; a hierarquia dos funcionários substitui sempre mais o governo dos nobres. Todos estes novos poderes agem segundo procedimentos e máximas que os homens da idade média não conheceram ou reprovaram, e que se relacionam a um estado de sociedade do qual não tinham sequer a idéia”. (55) Surge “a igualdade diante da lei, a igualdade dos cargos, a liberdade de imprensa, a publicidade dos debates, princípios novos ignorados pela sociedade medieval.” Trata-se de uma “nova ordem social e política, mais uniforme e simples, que tinha por base a igualdade de condições”. (56)

O poder real, para estabelecer seu poderio, enfrenta o poder dos municípios. Em quase toda a Europa, mas particularmente na França, a liberdade municipal, diz Toquecville, sobreviveu ao feudalismo. Em nações como a alemã e italiana, com caraceterísticas diversas, resistiram ao poder central várias cidades que eram pequenos Estados e cuja potência era maior ou menor conforme o jogo da guerra, da diplomacia, etc. Florença, cidade de Maquiavel, era uma cidade-Estado. O poder das urbes foi atenuado no feudalismo, sendo que alguns centros quase foram dissolvidos. Uma característica do Estado renascente é que ele encontra nas capitais e nas cidades maiores e mais ricas, seu ponto de apoio na reconquista de prerrogativas antes destinadas ao clero e aos nobres.

Tocqueville mostra o quanto foi importante para o centro do Estado sufocar a potência das cidades para impor a sua burocracia e a igualdade de todos diante do Rei. Mesmo no feudalismo, muitas cidades estratégicas mantiveram a prerrogativa de governar a si mesmas. Nelas, os magistrados eram eleitos, sendo responsáveis diante da população. A vida urbana é pública e ativa, as cidades se orgulham de seus direitos e são muito ciosas em relação a eles. (57) As eleições foram abolidas por volta de 1692. As funções municipais se transformaram nos offices, cargos vendidos pelo rei, em algumas cidades, a alguns habitantes para que governassem perpétuamente. Com o fim da liberdade, veio o sacrifício material. Afirma o autor que a transformação dos cargos, de eleitos para vendidos pelo rei, a primeira instituição a ser prejudicada, em detrimento dos cidadãos, foi a justiça. “A boa justiça”, diz Tocqueville, tem como condição “a completa independência do juiz”. Quando ela foi independente, foi possível encontrar responsabildiade, subordinação e zelo pela coisa pública. Os governos do monarca sabiam o quanto lhes seria prejudicial aplicar à sua administração a receita que impunham às cidades: seus cargos de intendentes e subdelegados nunca foram postos como ofícios venais.

Assim, “Luis XI restringiu as liberdades municipais porque seu caráter democrático lhe dava medo; Luis XIV as destruiu sem as temer. (…) Na realidade, eles queriam menos abolir tais liberdades, do que traficá-las e as aboliram foi, por assim dizer, sem pensar, por puro expediente financeiro”. O direito de eleger seus magistrados é vendido e arrancado das cidades pelos reis. Quando elas se acostumam às liberdades, o rei as retira, para revendê-las. E o rei confessa o fundamento fiscal desse comércio sem nenhum rubor. Diz o Edito de 1722 : “as necessidades de nossas finanças nos obrigam a buscar os meios mais seguros de aliviá-las”. (58) Tocqueville cita um Intendente que envia carta ao Controlador Geral em 1764: “Estou espantado com a enormidade das finanças pagas em todos os tempos para resgatar os ofícios municipais. O montante desta finança, empregada em obras úteis, seria proveitoso para a cidade que, pelo contrário, sentiu apenas o peso da autoridade e dos privilégios desses ofícios”. E finaliza Tocqueville: “Esta espécie de mercadoria se avilta cada vez mais, à medida que a autoridade municipal se subordina mais ao poder central”.

Enquanto ainda no século XV a Assembléia geral do municipio era composta por todo o povo, no fim do século XVII esta prática era rarefeita. No século XVIII o governo e as decisões estavam nas mãos dos notáveis, o povo se desinteressa pelos negócios municipais e “vive como estrangeiro no interior de seus próprios muros”. No século XVIII o governo municipal degenera em pequena oligarquia, “algumas familias conduziam neles os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França”. As cidades perdem a possibilidade de “impor concessões, decidir contributos, hipotecar,vender, disputar judicialmente, controlar seus bens, os administrar, empregar o excedentes de sua receita, sem ordens do conselho sob relatório do intendente. Todos os trabalhos são executados sob supervisão do conselho e aprovados por sua ordem”. Deste modo, os oficiais dos municipios, com os cargos comprados “sentem convenientemente o seu nada” diante do poder do Rei. “O último dos agentes reais, o sub-delegado os fazia obedecer aos mínimos caprichos. Com frequência, ele os multava; os aprisionava; pois as garantias que, em outros lugares, defendiam ainda os cidadãos contra o arbítrio, não mais existiam alí”.

Paro por aqui e assinalo que os capítulos seguintes do livro são importantes sobretudo para nós, os brasileiros, pois ele trata da independência do poder judiciário. Mas fiquemos no problema da igualdade. As urbes medievais eram assinaladas pela sua desigual força, poder, prerrogativas. O poder Estatal tentou igualizá-las, tornando-as centros desprovidos de força, venais, em favor do mando concentrado na capital. Os cidadãos que tinha direitos, desiguais mais direitos, passam a serem nutridos pelo castigo e pelas multas, além das taxas contra as quais não era possível recorrer. A burocracia real sufoca a independência dos municípios.

Passemos agora ao problema do mal no mundo humano. Os comentadores do século 20, entre eles Leo Strauss, Ernst Cassirer e outros, criticam Maquiavel por ter este tratado a ética e a política, com o mal no seu interior, “para usar as palavras de Spinoza, como se fossem linhas , planos, ou sólidos. Ele não ataca os principios da moralidade; mas ele não pode encontrar uso para eles na vida política”. (59) No caso de Spinoza, o problema do mal pode ser notado na Ética e, quando se trata do mal político, na Quarta Parte. (60) Interessa sublinhar que neste ponto da exposição, Spinoza trata ao mesmo tempo do antigo problema trazido pela noção de paradigma moral e político, ligados ambos à noção do que é perfeito e imperfeito, ruim e bom, certo e incorreto.

O que é a sociedade senão o vínculo de indivíduos humanos ? E o que são estes últimos senão um feixe complexo de paixões as mais diversas e conflitantes? Ao encarar tal jogo inextricável dos apetites humanos, filósofos como Platão empreendem estabelecer um governo das afecções pelo pensamento racional. Sigo agora as sugestões já antigas de Pierre Louis, num estudo precioso sobre as metáforas de Platão. (61) Segundo as Leis, a alma é anterior ao corpo (Leis, 892a, 896 b e c), deste modo ela naturalmente ela tem uma autoridade frente a ele, autoridade similar à do senhor diante do escravo. “Deus fez mais antiga a alma do que o corpo tanto pela idade quanto pela virtude de comandar como senhora, e o corpo para obedecer” (Timeu, 34 c). Interessa notar que o mando indicado no Timeu é de ordem despótica. O corpo é submetido à servidão (já o próprio título de Spinoza na Quarta Parte da Ética remete a este plano) e à obediência (Fedon, 80 a). Os prazeres do corpo são próprios ao que é servil (Fedro, 258 e). Isto estabelece uma hierarquia entre corpo e alma. E tal hierarquia não sendo respeitada, ocorre uma guerra permanente das afecções contra a alma despótica. A maior parte dos indivíduos são escravos do corpo (ou seja, são escravos de um escravo) (Fédon, 66 c d). Nesta passagem, afirma-se explícitamente que “as guerras, as dissenções, as batalhas, são trazidas pelo corpo e pelos seus desejos; pois é devido à posse das riquezas que se produzem todas as guerras, e, se nós somos obrigados a possuir riquezas, isto é por causa do corpo, somos como escravos prestes a serví-lo”. (62) O corpo é um peso que torna lenta a alma (Fedon, 81 c; Fedro 248 c, 256 b), como se fossem chumbo nela preso (República, 519 b).

Na dialética do senhor e do escravo, a alma está sujeita ao corpo por vínculos que a prendem (Fedon, 64 e, entre vários lugares). No Fedon, trata-se de cadeias de um prisioneiro enquanto no Timeu (73 d) são amarras de um navio. No Fédon, também, são pregos que fixam-na ou ainda no Fedro (250 c) são liames que ligam o corpo e a alma como a ostra é presa à sua crosta. Em especial, e isto possue relevância para que se pense a diferença entre platonismo e spinozismo, o corpo pode ser para a alma um túmulo (Górgias 493 a). Outras imagens menos sombrias são usadas por Platão, como a do corpo enquanto terreno no qual a alma semeia e se enraíza. O corpo pode ser comparado a um templo onde habita a alma, um ser divino (Leis, 869 b).

A psicologia que reside nessas imagens indica o sentido das metáforas platônicas sobre os embates ocorridos no ser humano, quando se trata das paixões. Platão distingue na parte irracional (alogiston) da alma dois instintos, a colera ou instinto de defesa (timoeidés) e o desejo (epitimétikon). Ela é um monstro triplo (República 588 c), sendo que o elemento irascível é comparado a um leão. Ainda na República (411 b) o timós representa os “tendões” da alma. Certas práticas imoderadas da música, podem afrouxá-los ou endurecê-los. Na mesma passagem, o timós é um metal que a música pode fundir. Finalmente, o timós é um fogo que pode ser extinto. Uma alma corajosa entregue sem medida à música torna-se rápida para encolerecer e lenta para diminuir seu ardor. (República, 411 c).

Junto ao leão, o timós, que não raro torna-se aliado da razão (República 440 b) a parte apetitiva da alma é uma besta fera e selvagem (tériodés te kai agrion), um bicho que é preciso nutrir, mas deixar bem preso. Neste campo, o desejo é comparado por Platão à fome ou sede. A democracia, lugar dos desejos irrefreados, é similar na sua sede de liberdade aos homens atendidos por péssimos servidores de vinho, os seus dirigentes. Nela, os cidadãos se embriagam de liberdade. Finalmente o desejo é comparado à uma corrente que carrega os homens. “Quando os desejos seguem violentamente rumo a um único objeto, sabemos, suponho, que eles têm menor força para tudo o mai, como uma corrente desviada numa só direção” (República, 485 d).

Quando se trata da questão do Mal, Platão também personifica os defeitos humanos. Na República, os defeitos são hóspedes que se instalam na alma do tirano como num albergue (580 a), enquanto a injustiça é um hóspede indesejável (367 a). A injustiça, o desprezo das leis, a desmesura são personalizadas na República (424 d, 610 e). O próprio Mal é um ser vivo correndo atrás dos humanos, mais rápido do que a morte (Apologia de Sócrates, 39 b). O malvado é uma fera selvagem, o filósofo no meio da multidão ignorante do bem é similar a um homem acuado por bichos ferozes (República, 496 d). Trasímaco é apresentado assim, antes de se jogar na discussão sobre a justiça e o direito do mais forte (República, 336 b-e). Na mesma República (588 b-e) a imagem é aplicada ao malvado, no sentido do monstro triplo. Conservar a calma é permanecer sóbrio (Fedro, 230 e). Quem perde o controle está bêbado de amor (Fedro, 240 e), de prazer (Critias, 121 a), de medo (Leis, 639 a-b). A alma serena é como um mar calmo (Fedon, 84 a). Mas tal calma é adquirida numa guerra contra os vícios. A virtude é um combate contra as paixões e os prazeres (Laches, 191 d).

Tendo-se em vista essas imagens do mal, pode-se passar ao problema do Estado (63), exposto como um organismo. Nas Leis, o Ateniense nota que um regime político, como um corpo, tem muitas ocasiões para se desagregar (945 c). O mundo político onde os cidadãos desrespeitam a justiça e a moral, é doente, e o malvado é uma peste (Protágoras, 322 d, República 552 c). A sociedade adoece quando mal governada, ou quando a discórdia a estraçalha. A grandeza de Atenas sob Péricles é descrita como um inchaço doentio (Górgias, 518 e 519 a, República, 372 a). Tal doença torna a sociedade fraca. Um máu governo é um corpo fraco, que o menor abalo externo basta para adoecer (República, 556 e). O legislador deve cuidar da saúde do corpo político, como um médico, para lhe dar ou conservar a saúde. Ou então, ele é o dirigente de um navio, um piloto, no meio das ondas causadas pelos outros Estados. Quando faltam os pilotos, os passageiros do Estado sentem a flutuação do mar e têm medo, insegurança. (Leis, 758 a).

Paremos essa resenha, baseada na exploração minuciosa de Pierre Louis, e retornemos ao texto spinozano. Embora Spinoza leve em conta os problemas apresentados por Platão (e pela ordem moral imperante no Ocidente), ele apresenta uma reversão perceptível de imediato no diagnóstico do Estado, do regime político, do mal e das afecções humanas. Sigamos a parte Quarta da Ética desde o começo.

Se Platão indica que a alma deve governar despóticamente os desejos, sendo estes últimos servos dela, quando indivíduos ou povos não dominam assim as suas paixões, eles se tornam escravos de escravos. Spinoza parece seguir o mesmo pensamento quando afirma ser a servidão humana a impotência para governar, ou moderar as afecções. Quando submetido às afecções, o homem não é sui iuris, não segue a sua própria lei (não é autônomo, diria um kantiano) mas obedece a Fortuna, cujo poder sobre ele é tal que o constrange a, mesmo vendo o melhor, seguir o pior.

Spinoza propõe-se, logo, explicar a causa desse estado em que o indivíduo, atônito, não consegue unir o que é melhor com a sua ação, mas obedece o pior mesmo ao ver o melhor. O “melhor” seria o que o tornaria sui iuris, o “pior” o que o joga na incerteza externa da Fortuna. Os leitores de Maquiavel percebem que os termos usados por Spinoza são extraídos da análise executada pelo Florentino sobre o poder, o problema da sua manutenção ou perda. Como analisar o mando político e o controle das paixões, sem discutir as teses tradicionais sobre a perfeição e a imperfeição do Estado e dos indivíduos, do bem e do mal que os ameaçam ou salvam ? Para entendermos todo esse movimento noético, recordemos o vínculo entre o mal e o poder, em Platão, como os apresentamos acima. É nuclear, para entendermos a política platônica a ser recusada por Spinoza, discutirmos a noção de paradigma.

"Paradigma" surge num campo da língua grega que se liga deiknumi, cujo sentido é "mostrar", "demonstrar", "indicar". Quando acrescido da partícula "para", significa "mostrar, fornecer um modelo". Termo importante na técnica dos oradores. (64) A raiz deik-, por sua vez, refere-se ao ato de "mostrar mediante a palavra", mostrar "o que deve ser", donde a conseqüência de união com dike a lei, a regra. (65) Uma interpretação do pensamento platônico, pelo menos em determinadas passagens, coloca o paradigma como ilustração de uma evidência sensível que remete para uma necessidade inteligível. (66)

A noção de paradigma cobre, na Antiguidade, os campos hoje distantes da ciência, da técnica, das artes. A filosofia deu-lhe vários estatutos, todos eles capitais para as atitudes éticas herdadas por nós. Na expressão grega, paradeigma tem a ressonância de modelo, exemplo, plano de arquiteto. Em Heródoto (5, 62), o termo é usado para indicar o esforço dos atenienses na construção do templo, em Delfos: "sendo muito ricos e, como seus pais, homens de reputação, eles trabalharam no templo para que ele tivesse uma forma mais bela do que a posta no paradigma". (67) O contexto dessa passagem de Heródoto é de luta política contra o despotismo. Nela, o elemento político une-se à ética e à estética.

Em Platão, o termo refere-se, entre vários reflexos semânticos, ao modelo do pintor. Na República (500e), Sócrates discute com Adimantos sobre o homem ético e sábio, cujo pensamento está fixado nas coisas eternas e verdadeiras. Um tal homem não tem lazer para inspecionar as mesquinharias dos indivíduos comuns mas dirige seus olhos para o eterno, com sua ordem imutável. Quanto mais admira as coisas eternas, mais ele se produz à sua semelhança e assimila a si mesmo a elas. Após várias considerações sobre o povo, e seu modo inconstante de viver e opinar, Sócrates retoma a tese de que, à semelhança do homem reto, a cidade apenas será feliz "se as suas linhas forem traçadas por artistas em pintura, os quais usam o paradigma celeste". (68) No mesmo diálogo, de 591c até 592b, lemos que o homem reto une à saúde física a justiça sapiente, operando de modo a estabelecer harmonia entre sua alma e seu corpo. Desse modo, ele será o músico verdadeiro, afastando a desmedida que impera na multidão, no relativo às riquezas. Ele enxerga a harmonia de sua alma, fuge do excesso ou da falta de bens. Tal homem fará, com prazer, em público ou em privado, tudo o que não dissolva o hábito (de hexis, donde "ética") de sua alma. Assim, ele não irá voluntariamente se misturar à política. Sua participação será dirigida para a cidade, não a de seu nascimento, mas a que é descrita na República, "cujo modelo (paradigma), talvez esteja no céu, para quem deseja contemplá-la e se tornar seu cidadão. Mas não faz diferença alguma se ela existe agora ou se ela está sempre se tornando. A política dessa cidade sempre será apenas dele, e de nenhum outro". E assim termina o livro 9 da mais eminente obra sobre ética e política de nossa cultura. No trecho, encontramos vinculados exemplos das artes, da música entre outras, com a busca da medida ética e cívica. Platão julga ser necessário forçar o homem reto e sábio a se comprometer com a vida política, mesmo que ele, voluntariamente, respire melhor na celeste harmonia.

No Timeu, o filósofo distingue, na teorização do universo, o que sempre é e não tem devir e o que está em devir e nunca é. O primeiro pode ser captado pelo pensamento com a ajuda da razão, pois é idêntico a si mesmo, enquanto o outro é conjecturável pela opinião com a ajuda da sensação desprovida de razão, pois é gerada e perece. Aliás, tudo o que nasce deve necessariamente nascer de uma causa, pois nada pode, sem causa, nascer. Assim, pois, quando o operário (demiurgo) que forma um objeto, com os olhos fixos no imutável, toma um modelo (paradigma) desse tipo, aquele objeto, executado desse modo, deve necessariamente ser belo; mas sempre que ele olha para o que vem à existência e usa um modelo (paradigma) produzido, o objeto assim executado não será belo (28 a-c). E Platão passa a discutir o Demiurgo ou Pai do cosmos, interrogando "qual modelo (paradigma) foi usado pelo Arquiteto para construí-lo? Foi o que é sempre idêntico a si mesmo e uniforme, ou segundo o que vem à existência? Ora, se o cosmos é belo e seu construtor é bom, é claro que ele fixou os olhos no que sempre é". Portanto, "ele construiu o cosmos segundo o modelo do perceptível pelo pensamento e pela razão, e, pois, é idêntico a si mesmo". (69)

Segundo Henri Martin, a presença constante do termo "paradigma" reforça a interpretação do pensamento platônico segundo a qual, para ele, com exceção de uma só essência, a indivisível e imutável, todas as demais essências das coisas nada oferecem de estável, sendo, portanto, estranhas ao domínio da ciência. O demiurgo, o fabricante do cosmos a partir das idéias que ele contempla, e da matéria preexistente, é descrito no Timeu em várias formas de trabalho técnico e artístico. Ele é um modelador de cera, um operário que recorta a madeira, um construtor que sintetiza todos os elementos, um fabricante (poietés). (70) Nem é preciso recordar a polissemia de poietés, no transcurso da história ocidental. Fala-se muito do ódio platônico aos artistas. Mas não se toma em suficiente conta as expressões da beleza no artifício chamado cosmos, resultado de um trabalho artístico. Conhecemos os lugares comuns da história da filosofia sobre Platão, "inimigo das artes" e defensor da ciência. Todas as modernas objeções à teoria platônica da arte estão centradas na assertiva de que o seu racionalismo o impede de reconhecer o caráter específico da criação artística. Ele é acusado de modelar a arte segundo a ciência, a qual deve copiar a natureza do modo mais verdadeiro possível. Diz-se ter ele esquecido que a arte verdadeira não copia uma realidade existente, mas cria uma nova realidade que brota da fantasia própria ao artista, e que o caráter espontâneo dessa expressão garante o valor independente das puras qualidades estéticas. Não irei ampliar este ponto, bem discutido por W.J. Verdenius. (71)

Hans-Georg Gadamer, analisa o Timeu e retoma a idéia de Platão de que o paradigma deve ser único, porque ele serve ao demiurgo para moldar o universo, o qual tudo inclui em si mesmo. Entre o paradigma e as suas cópias, estas são múltiplas, haveria uma diferença importante. Sobretudo após a moderna hegemonia romântica, que potenciou o cristianismo, para o qual o universo é criado por Deus a partir do nada, (72) foi desvalorizado o difícil trabalho do "poeta" demiurgo, que luta com a matéria rebelde e fluente para construir um artefato. O mundo da arte, como o da religião, invoca um Deus onipotente, o qual "cria" o universo ex nihilo. Essa idéia, aplicada ao gênio romântico, afastou os termos "modelo", "imitação", e outros, essenciais no argumento platônico.

De Platão aos nossos dias, encontramos nas teorizações sobre a natureza, a sociedade, o homem, paradigmas extraídos especialmente do nosso próprio corpo, ou dos instrumentos por nós produzidos. Ou projetamos o cosmos e o social como imenso corpo, e ampliamos ao máximo o modelo do organismo, ou ideamos o universo na figura de refinada máquina, construída por um demiurgo, cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, de Platão a Hobbes e aos philosophes das Luzes, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo de Aristóteles aos estóicos, e deles aos românticos. Evidentemente, nenhum desses paradigmas foi utilizado, sempre, de modo unívoco ou sem "contaminações", pelo seu oposto. Nem tudo em Aristóteles é "orgânico". Georges Canguilhem mostra as dificuldades encontradas, nesse sentido, para se definir uma ou outra perspectiva. (73)

No Renascimento teve enorme impulso o paradigma instrumental, mecânico, o que repercutiu até no século XX. Entre inumeráveis exemplos, tomemos o do matemático Henri de Monantheuil, que apresentou, na trilha do Timeu, Deus como um mechanikos e mechanopoios, com o resultado de que o mundo seria "a máquina mais eficaz, sólida e bela de todas as máquinas" (Mundus enim hic machina est, quidem machinarum maxima, efficacissima, firmissima, formosissima). (74)

Mas voltemos a Platão, e ao nexo entre paradigma e conceito. Como vimos, o paradigma abarca figuras instrumentais, ofícios, técnicas, para tentar uma aproximação da realidade. Naquela palavra, temos uma gama de ressonâncias plásticas, científicas, jurídicas, éticas. Nos próprios textos platônicos, especialmente no Timeu, toda a imagética mecânica não exclui figuras de ordem vital. (75)

Passada a inspeção do conceito de paradigma, voltemos ao texto da Quarta parte da spinozana. O filósofo toma como fio condutor de sua análise das afecções e da ordem política, tendo como foco o problema do mal, o fato da produção técnica e artística segundo paradigmas. “Quem faz uma coisa e a terminou diz que ela está perfeita. E não apenas ele, mas todos os que tiverem conhecimento exato da intenção do autor de tal obra e o seu fim, ou que acredita ter semelhante conhecimento. Por exemplo: se alguém enxerga uma obra não acabada e sabe que o fim do seu autor é construir uma casa, dirá que a casa está imperfeita. Dirá no entanto que está perfeita, quando perceber que a obra chegou ao fim que o autor queria efetivar. Mas se alguém vê uma obra, nunca tendo visto coisa igual e desconhecendo o fim do do artista (opificis), não poderá saber se a obra está perfeita ou imperfeita.”. Ética.

A raison d´État, portanto, encontra-se na urgência de ser refeita a máquina da instituição política, segundo os seus interesses próprios e nunca segundo os interesses de outros engenhos estatais. "A força para conservar a si mesmo é o supremo e único fundamento da virtude" (Ética). O que vale para os indivíduos, impera nos Estados. A razão, no caso, é a forma e o ato pelos quais um povo, caso o regime seja democrático, alguns dirigentes em caso de aristocracia ou oligarquia, ou um monarca cuida de conservar intacto o mecanismo e a força do Estado em seu proveito, durante o maior tempo possível. Todas as astúcias podem e devem ser movidas neste empenho, desde que não sejam colocadas contra o povo. A raison d´État, no sentido spinozano, difere portanto das outras doutrinas sobre o tema, mas continua fiel à lógica maquiavélica, repúblicana. A novida é que ela é democrática. Se isto é algo possível, ainda estamos longe de concluir, positiva ou negativamente. Pelo que parece, o movimento da racionalidade estatal contemporânea segue mais rumo à desrazão, do que à razão de Estado.


Notas

(1) “A transparência democrática, esperanças e ilusões” in O Caldeirão de Medéia (São Paulo, Editora Perspectiva, 2001).
(2) Cf. “Institutio arcanae. Théorie de l´institution du secret et fondement de la politique”. In Lazzeri, Christian, e Reynié, D. : Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, pp. 135 e ss.
(3) O termo e o plano político aberto por ele foi exaustiva e profundamente estudado por Claude Lefort, Machiavel, le travail de l´oeuvre, Paris, Gallimard, 1973.
(4) René de Criziers, Le Tacite français avec des réflexions chrétiennes et politiques sur la vie des rois de France. Paris, 1648, citado por Goni, p. 139.
(5) Análise de A. Lévy, “Évaluation étymologique et sémantique du moto `secret`. in Du secret. Nouvelle revue de psychanalise. 14, 1876. Goni, p. 137.)
(6) Cf. “A razão terrorista”, in Mosaico, Revista da Fundação João Pinheiro, fevereiro de 2002, incluído acima nesta coletânea.
(7) Edição italiana de Giovanni Macchia: Breviario dei Politici, secondo il Cardinale Mazzarino. Milano, Rizzoli Ed., 1981.
(8) Cf. Curtius, E. : La littérature et le moyen âge latin. Paris, PUF, 1956, p. 219.

(9) Analiso extensamente este ponto num capítulo de meu livro Lux in Tenebris, intitulado “Massa, poder e morte”. São Paulo, Ed. Unicamp, 1987, pp. 23 e ss. Quanto aos textos sobre a escrita secreta, é possível consultar alguns escrito na internet, como o Steganographia de João de Trittenheim . Cf. http://www.esotericarchives.com/tritheim/stegano.htm

(10) Cf. Torture and Truth. London, Routledge Ed., 1991.

(11) Roberto Romano, O Caldeirão de Medéia. pp. 139 e ss. em especial pp. 140-141.

(12) Cf. Lazzeri, Christian e Reynié, Dominique: “Introduction” ao livro La raison d´Etat: politique et rationalité. Paris, PUF, 1992, pp. 9 e ss.

(13) Lembro apenas três textos fundamentais para se entender uma parte deste rico pensamento: o volume de Laurent Thirouin, Le hasard et les règles. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal. Paris, Vrin, 1991, e o pequeno grande livro de Gerard Lebrun, BlaisePascal, Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1983, além do clássico de Sainte Beuve, Port Royal, Paris, Gallimard. 3 volumes.

(14) Cf. Brès, Yvon. La Psychologie de Platon, Paris, PUF, 1973. sobretudo pp. 362 e ss. Brès comparar a técnica platônica à dos “persuasores escondidos”, que operam no mercado econômico e político de nossos tempos. Cf. Vance Packard, The Hidden persuaders, NY, David and Co., 1957. Tradução francesa : La persuasion clandestine, Paris Calman Levy, 1958.

(15) Cf. Barnes. H. E. e Becker, H. : Historia del Pensamiento Social. trad. Vicente Herreo, Mexico, FCE, 1945, V. I. pp. 311 e ss.

(16) Uso a edição de C. Edward Rathé, Anti-Machiavel, Droz, Genève, 1968.

(17) Cf. Viroli, Maurizio. Machiavelli (Oxford University Press, 1998), p. 49. Viroli cita Guicciardini, no Diálogo sobre o Governo de Florença. Importante também a nota do mesmo Viroli sobre a idéia de Estado em Maquiavel, segundo os comentadores de hoje: “O significado da palavra stato foi discutido em vasta literatura acadêmica. Em contraste com a opinião de Francesco Ercole, La politica di Machiavelli ( Rome: ARE, 1926), 123-42, Fredi Chiappelli afirma que ´no Principe,o genuino tratado político de Maquiavel, a palavra stato denota, com poucas exceções, a organização política do povo sobre um território independente da forma particular de governo ou regime —ou seja, a moderna noção abstrata de Estado; ver Studi sul linguaggio di Machiavelli ( Florence: Le Monnier, 1952), 59-68. Uma opinião oposta é sugerida por Jack H. Hexter, o qual sustenta que o Principe não contem a concepção do Estado como um corpo político abstrato que transcende os indivíduos que o compõe ou governam; cf. The Vision of Politics on the Eve of the Reformation: More, Machiavelli, and Seyssel ( New York: Basic Books, 1973), 150-78. Cf. também Quentin Skinner, "'The State'", in Terence Ball, James Farr, and Rusell L. Hanson (eds.) Political Innovation and Conceptual Change ( Cambridge: Cambridge University Press, 1989), 90-131.” Viroli, Machiavelli, nota 33, op. cit.

(18) Della ragion di Stato, Veneza, 1589.Cf a edição sob os cuidados de Chiara Continisio, Roma, Donzelli Editore, 1997. Cf. também M. Senellart, Machiavélisme et raison d´Etat, Paris, PUF, 1989.

(19) Sobre a história dessas aproximações entre Maquiavel e a Companhia de Jesus, leia-se Michel Leroy, Le Mythe Jésuite. De Béranger à Michelet. Paris, PUF, 1992. Também, Basançon, Alain: Les origines intellectuelles du léninisme. Paris, Calman Lévy, 1977.

(20) Roberto Romano : Brasil, Igreja contra Estado, SP, Kayrós, 1979.

(21) Roberto Romano. Conservadorismo romântico origem do totalitarismo. SP, Ed. Unesp 1997 (1a ed. SP, Brasiliense, 1981) e Roberto Romano, “O pensamento conservador” in O Caldeirão de Medéia, SP, Perspectiva, 2001, pp. 247 e ss.
(22) Cf. Watt, John A. : The Theory of Papal Monarchy in the Thirteenth Century. The contribution of the canonists. NY, Fordham University Press, 1965. Também Robinson, I.S. The Papacy, 1073-1198. Continuity and Innovation. NY, Cambridge University Press, 1993. Também Tellenbach, G. The Church in Western Europe from the tenth to the early twelfth century. NY, Cambridge, 1996. Cf. Roberto Romano “Igreja domesticadora de massas?” e “Lembra-te de que és homem: governantes e juízes no Policraticus de Jean Salisbury”, in O Caldeirão de Medéia. ed. cit.
(23) Cf. As teses desenvolvidas a partir de agora devem-se a Alexandre Matheron, especialista na filosofia política spinozana, em escrito longo e rigoroso coletado no livro de Christian Lazzeri e Dominique Reynié: La raison d´État, politique et rationalité (Paris, PUF, 1992).
(24) “Denique quia omnes homines, sive barbari sive culti sint, consuetudines ubique iungunt et statum aliquem civilem formant, ideo imperii causae et fundamenta naturalia non ex rationis documentis petenda, sed ex hominum communi natura seu conditione deducenda sunt, quod in sequenti capite facere constitui.”
(25) “Concludo itaque, communia illa pacis vitia, de quibus hic loquimur, nunquam directe, sed indirecte prohibenda esse, talia scilicet imperii fundamenta iaciendo, quibus fiat, ut plerique, non quidem sapienter vivere studeant (nam hoc impossibile est), sed ut iis ducantur affectibus, ex quibus reipublicae maior sit utilitas. Atque adeo huic rei maxime studendum, ut divites si non parci, avari tamen sint. Nam non dubium est, quin, si hic avaritiae affectus, qui universalis est et constans, gloriae cupidine foveatur, plerique rei suae sine ignominia augendae summum ponant studium, quo honores adipiscantur et summum dedecus vitent.”.
(26) “Unaquaeque res, quantum in se est, in suo esse perseverare conatur”. Ética, Tradução Aphhun, páginas 260-261 e portuguêsa, página 275.
(27) “Quicquid Corporis nostri agendi potentiam auget, vel minuit, juvat vel coercet, ejusdem rei idea Mentis nostrae cogitandi potentiam auget vel minuit, juvat vel coercet”.
(28) Escólio da proposição: “entendo por alegria a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior, por tristeza a paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor.” (Aphhun, páginas 266-267 e seguintes ; portuguêsa página 278 e seguintes).
(29) Faço, nas passagens acima, uma paráfrase do próprio Spinoza. Cf. Apphun, páginas 162-163.
(30) Escólio: “Esta imitação (imitatio) das afecções, quando ocorre diante de uma tristeza, chama-se comiseração, mas quando diante de um desejo, torna-se emulação, que nada mais é do que o desejo de uma coisa, engendrado em nós por termos imaginado que outros seres similares a nós têm dela o desejo.”
(31) “ Hoc ius, quod multitudinis potentia definitur, imperium appellari solet. Atque hoc is absolute tenet, qui curam reipublicae ex communi consensu habet, nempe iura statuendi, interpretandi et abolendi, urbes muniendi, de bello et pace decernendi, etc. Quod si haec cura ad concilium pertineat, quod ex communi multitudine componitur, tum imperium democratia appellatur, si autem ex quibusdam tantum selectis, aristocratia, et si denique reipublicae cura et consequenter imperium penes unum sit, tum monarchia appellatur.”
(32) “Praeterea certum est, unumquemque malle regere, quam regi. “Nemo enim volens imperium alteri concedit(…) Ac proinde patet, quod multitudo integra nunquam ius suum in paucos aut unum transferet, si inter ipsam convenire possit, nec ex controversiis, quae plerumque in magnis conciliis excitantur, in seditiones ire. Atque adeo multitudo id libere tantummodo in regem transfert, quod absolute in potestate ipsa habere nequit, hoc est, controversiarum diremptionem et in decernendo expeditionem. Nam quod saepe etiam fit, ut rex belli causa eligatur, quia scilicet bellum a regibus multo felicius geritur, inscitia sane est, nimirum quod, ut bellum felicius gerant, in pace servire velint; si quidem pax eo in imperio potest concipi, cuius summa potestas sola belli causa in unum translata est, qui propterea virtutem suam et quid omnes in ipso uno habeant, maxime in bello ostendere potest; cum contra imperium democraticum hoc praecipuum habeat, quod eius virtus multo magis in pace, quam in bello valet. Sed quacumque de causa rex eligatur, ipse solus, ut iam diximus, quid imperio utile sit, scire nequit; sed ad hoc, ut in praeced. art. ostendimus, necesse est, ut plures cives consiliarios habeat…”
(33) TP, III/9 : “Tertio denique considerandum venit, ad civitatis ius ea minus pertinere, quae plurimi indignantur. Nam certum est, homines naturae ductu in unum conspirare, vel propter communem metum vel desiderio damnum aliquod commune ulciscendi; et quia ius civitatis communi multitudinis potentia definitur, certum est, potentiam civitatis et ius eatenus minui, quatenus ipsa causas praebet, ut plures in unum conspirent. Habet certe civitas quaedam sibi metuenda, et sicut unusquisque civis, sive homo in statu naturali, sic civitas eo minus sui iuris est, quo maiorem timendi causam habet”
(34) “[…] tradenda est via et methodus, qua res, quae sunt cognoscendae, tali cognitione cognoscamus. Quod ut fiat, venit prius considerandum, quod hic non dabitur inquisitio in infinitum ; scilicet ut inveniatur optima methodus verum investigandi, non opus est alia methodo, ut methodus veri investigandi investigetur ; et ut secunda methodus investigetur, non opus est alia tertia, et sic in infinitum. Tali enim modo nunquam ad veri cognitionem, imo ad nullam cognitionem perveniretur. Hoc vero eodem modo se habet, ac se habent instrumenta corporea, ubi eodem modo liceret argumentari. Nam ut ferrum cudatur, malleo opus est, et ut malleus habeatur, eum fieri necessum est ; ad quod alio malleo, aliisque instrumentis opus est, quae etiam ut habeantur, aliis opus erit instrumentis, et sic in infinitum ; et hoc modo frustra aliquis probare conaretur, homines nullam habere potestatem ferrum cudendi. Sed quemadmodum homines initio innatis instrumentis quaedam facillima, quamvis laboriose et imperfecte, facere quiverunt, iisque confectis alia difficiliora minori labore, et perfectius confecerunt, et sic gradatim ab operibus simplicissimis ad instrumenta, et ab instrumentis ad alia opera, et instrumenta pergendo eo pervenerunt, ut tot et tam difficilia parvo labore perficiant, sic etiam intellectus vi sua nativa facit sibi instrumenta intellectualia, quibus alias vires acquirit ad alia opera intellectualia, et ex iis operibus alia instrumenta seu potestatem ulterius investigandi ; et sic gradatim pergit, donec sapientiae culmen attingat.”
(35) Tratado Teológico-Político, Capítulo 17. Oeuvres complètes de Spinoza, Paris, Gallimard (La Pleiade), 1954. No caso desta citação, cf. p. 905.
(36) Para a história e os fundamentos gregos da igualdade, cf. Ada Neschke-Hentschke: Platonisme Politique et Droit Naturel. Contributions à une archéologie de la culture politique européenne. Louvain/Paris, Édtions de l ´Institut Supérieur de Philosophie, Université Louvain-la-Neuve, 1995.
(37) Cf. Carta a Jarig Jelles (02/06/1674). Ed. cit. p. 1286.
(38) “Spinoza considera cada indivíduo como tendo transferido todos o seu poder e portanto omne jus suum, à comunidade, a qual possui absoluto poder sobre todos os homens (Tratado Teológico-Político, capítulo 16, Tratado Político, capítulos 3 e 4). Mas a autoridade do Estado é limitada pelo menos pela lei natural com seu próprio poder. Não pode ser o caso realmente de nenhuma ordem, nem pode o dirigido realmente transferir tudo, porque ele permanece homem, um ser espitirual e moralmente livre. Mais especialmente, o indivíduo reserva para si mesmo o poder de pensar o que gosta e expressar suas opiniões oralmente ou por escrito. Mas onde o poder de Estado acaba, acaba também o seu direito; e a razão, que sempre considera seu próprio interesse, impele o Estado a limitar a si mesmo, para que ele não perca o seu poder, e o seu direito, devido à resistência. Nesta via o Estado consegue um conhecimento do ´ditado da razão´ —o seu verdadeiro objeto não é a dominação, mas a liberdade (Tratado Teológico-Político, capítulos 16, 17,).
(39) Este e outros importantes textos do autor podem ser encontrados no Foglio Spinoziano Cf. http://www.fogliospinoziano.it/articoli.htm
(40) Lucia Nocentini in http://www.fogliospinoziano.it/ethica_bull.htm. Retomo aqui, literalmente, os passos de meu artigo “A igualdade, considerações críticas”, publicado no Foglio Spinoziano e na Revista Brasileira de Direito Constitucional.
(41) Nocentini cita Matheron: “Nenhuma diferença, por conseguinte, entre as leis jurídicas e as leis físicas: umas e outras são as regras uniformes pelas quais se exprime a vida de uma essência individual (…) o imperium, não mais do que o homem, não é império num império; mas, como o homem, e como não importa qual ser, ele constitui uma totalidade fechada em si e dotada, por esta razão, de uma autonomia relativa (…) compreendemos, assim, as relações entretidas pelo indivíduo humano com o indivíduo Estado onde ele se itegra. Estas relações são duplas. De uma parte, os súditos são a causa imanente da sociedade política (…) Este movimento ascensional pode se efetuar mais ou menos bem, mas sua parada completa significaria a destruição do corpo social. Se o Estado existe, em definitivo, é apenas na medida em que os seus membros o desejam; que eles deixem de aceitá-lo, e logo ele desaparecerá. Mas de outro lado, o Estado, uma vez produzido, apresenta se aos súditos sob a forma da transcendência (…)Transcendência e imanência (…) devem achar um justo equilibrio. Tal é o papel das instituições (…) Um excesso de imanência nos conduziria ao estado de natureza. Um excessso de transcendência igualmente, pois ele significaria tirania, descontentamento e revolta”. Cfr. A. MATHERON, Individu et communnauté chez Spinoza, Paris, Les Editions de Minuit, 1969, pp. 348, 350. O debate sobre o “maquiavelismo” de Spinoza consome imensos rios de tinta. Para uma discussão recente, leia-se Paolo Cristofolini, 'Spinoza e l’acutissimo fiorentino' (2001) publicado na internet: http://www.fogliospinoziano.it/artic9b. Veja -se a consideração crítica deste trabalho em Wim Klever: “Imperium Aeternum. Spinoza‘s Critique of Machiavelli and it‘s source in Van den Enden”, mesmo endereço eletronico.
(42) Cf. Matheron A. op. cit. p. 143. As ilações que faço a seguir são retomadas totalmente deste comentador.
(43) Cf. Laux, Henri: Imagination et Religion chez Spinoza. La potentia dans l ´Histoire. Paris, Vrin, 1993.
(44) É banal entre os comentadores de Hobbes a análise centrada nesse ponto batido, muito batido na política do filósofo. No Brasil, leia-se o texto de Renato Janine Ribeiro, Ao leitor sem medo, SP. Brasiliense, 1984.
(45) Matheron, p. 145.
(46) Maria Luisa Ribeiro Ferreira, op. cit. p. 504.
(47) Idem, ibid. p. 517.
(48) Cf. Verniere, Paul. Spinoza et la pensée francaise avant la revolution, (Paris, PUF, 1954).
(49) Esta certeza foi enunciada de maneira peremptória por Jacques Maritain em sua obra maior intitulada Distinguer pour unir, les degrés du savoir. Sobre este eminente autor, cf. Roberto Romano, “Maritain filósofo dos matizes” in Corpo e Cristal, Marx romântico (RJ, Ed. Guanabara, 1987), pp. 141 e ss.
(50) Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. Roberto Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós Ed. 1979). Ainda julgo insuficientes os elementos teóricos para publicar um livro sobre o tema. Mas penso que ele é essencial para se entender os pressupostos da política católica, tanto no interior quanto no relacionamento da Igreja com a sociedade civil e política. Desde Lorenzo Valla, o estudo desse autor foi modificado, a partir do seu próprio nome. A partir das análises filológicas de Valla, a lenda que envolveu a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo de Tarso pregous aos incrédulos gregos o Cristo. Todo o tema é difícil e fascinante, mas não posso desenvolver, aqui, os seus meandros. Os leitores que desejem informações sobre o assunto, leiam os textos do próprio Dionísio. Uso para os fins deste trabalho a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese compreensiva do problema, cf. Paul Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
(51) Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
(52) Uma análise mais ampla desta problemática é feita por mim em trabalho já antigo : Cf. “Lux in Tenebris. Franciscanos e Dominicanos, utopia democrática”, in Lux in Tenebris. Meditações sobre Filosofia e Cultura. SãPaulo, Unicamp Ed., 1987, pp. 31 e ss.
(53) Cf. “Farinata e Cavalcante” in Mimesis. A representação da Realidade na Literatura Ocidental. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1971, pp. 161-162.
(54) Cf. Burke, Peter : A fabricação do Rei. A construção da imagem pública de Luis XIV. (RJ, Zahar Ed., 1994).
(55) Cf. L´Ancien régime et la Révolution (Paris, Gallimard, 1967), páginas 77-78.
(56) Op.cit. páginas 78- 80.
(57) Op. cit. capítulo III: “Comment ce qu´on appelle aujourd´hui la tutelle administrative est une institution de l ´ancien régime”, página 110 e seguintes.
(58) Na Regência de Filipe d´Orleans, com o caixa vazio, o primeiro ministro nomeado em 1722, Cardeal Dubois, tentou todo tipo de artificio para encher os cofres reais. Entre outros, estavam as artimanhas ficanceiras de Law, que desejou instalar o monopólio das finanças e do comércio para o Estado, cujos lucros diminuiriam as dívidas reais. Em 1716, foi criado o Banco Geral (Banque Générale) com capital predominante do governo francês. Mais tarde, criou-se o Banco Real (Banque Royale), com notas garantidas pelo rei. Um empreendimentos de Law era a Companhia Perpétua das Indias (1719). Toda a sua operação dependia dos negócios da Louisiana, cuja força foi super-dimensionada por Law e por seus propagandistas. Com a especulação, as ações da companhia subiram ao máximo mas em 1720 houve a desconfiança do mercado, caindo as ações em 1720. O Estado quase faliu.
(59) Cf. Cassirer, Ernst: The Myth of the State (New Haven/London, Yale University Press, 1956), página 143.
(60) “Da servidão Humana, ou da força das afecções”.
(61) Cf. Louis, Pierre: Les Métaphores de Platon. (Rennes, Imprimeries Réunies, 1945), páginas 113 e seguintes. Todas as indicações que faço a seguir derivam desta fonte.
(62) Uso a tradução do Fedon proposta por Leon Robin: Oeuvres Complètes de Platon (Paris, Gallimard, Ed. Pléiade, 1950), Volume I, página 778.
(63) Sigo sempre o comentário de Pierre Louis, sem nada acrescentar nestes passos.
(64) Cf. Chantraine, P. : Dictionnaire étymologique de la langue grecque (Paris, Klinksieck, 1983), página 257.
(65) Cf. Benveniste, E. : Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. (Madrid, Taurus, 1983), páginas 301 e 303.
(66) Cf. Goldschmidt, V. : Les dialogues de Platon. Structure et methode dialectique. (Paris, PUF, 1947), página 207.
(67) Cito segundo a tradução de A.D. Godley, na Loeb Classical Library: Herodotus (Cambridge, Harvard University Press, 1971), Volume III, páginas 66 e 67.
(68) Sigo a tradução de P. Shorey na Loeb Clasical Library, Plato in 12 volumes, The Republic, T.VI, II, páginas 68 a 71.
(69) Cito segundo a tradução de H. Martin: Le Timée de Platon (Paris, Vrin, 1981), págnas 82 a 85.
(70) Cf. Brisson, L. : Le Même et l ´Autre dans la structure ontologique du Timée de Platon (Paris, Klincksieck, 1974), página 31 e seguintes.
(71) “Plato´s doctrine of artistic imitation” in Vlastos, Gregory: Plato. A collection of critical Essays. Ethics, politics, and philosophy of art and religion. Volume 2, (Notre Dame, University Press, 1971), página 259 e seguintes.
(72) A operação mental cristã, baseada no platonismo médio (inaugurado no primeiro século antes de Cristo por Antíoco, e desenvolvido em sentido místico por Numenius), extrai certos elementos do texto platônico, deixando outros na sombra. No caso do Timeu, sobretudo de 28c, trecho que estamos apreciando, há um deslizamento semântico, quando se vai do texto platônico aos padres da Igreja. "Em Platão, o texto designa o Demiurgo, distinto do Bem. Ora, o médio platonismo identifica um e outro: o Deus criador é o Deus supremo". Clemente de Alexandria, padre apologeta, atribui ao filósofo grego a crença "na criação do mundo ex nihilo". Cito Jean Daniélou: Message évangélique et culture hellénistique. (Tournai: Desclée & Co., 1961), página 104 ss.
(73) “Devemos, na realidade, fazer descer até Aristóteles a assimilação do organismo a certa máquina (...) Aristóteles encontrou, na construção das máquinas de guerra, como as catapultas, a permissão de assimilar a movimentos mecânicos automáticos os movimentos dos animais. (...) Ele assimila efetivamente os órgãos do movimento animal aos `organa', ou seja, partes de máquinas de guerra, por exemplo, o braço de uma catapulta que vai lançar o projetil (...) Ele foi fiel, neste ponto, a Platão, o qual, no Timeu, definiu o movimento das vértebras como se fossem os de gonzos". Cf. Canguilhem, G. "Machine et organisme", in: La connaissance de la vie (Paris.Vrin, 1980) páginas 107-108.
(74) Henricus Monantholius: Aristotelis mechanicam Graeca emendata, latina facta, et comentariis illustrata (Paris, 1599), citado por Bredekamp, Horst: Nostalgia dell´antico e fascino della macchina. Il futuro della storia dell´arte. (Milano, Il Saggiatore, 1996), páginas 48 e 136.
(75) Taylor, A.E. : Plato, the man and his work. (NY, Meridian Books, 1957), página 41 e seguintes.

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