terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

Feras sem coração seguem leis?

Publicada em 20/2/2007

Correio Popular de Campinas.

Feras sem coração seguem leis?


ROBERTO ROMANO


Um problema que atormenta os estadistas verdadeiros, os que se preocupam com a sorte de sua gente —tais pessoas são raras— é a difícil obediência às leis. Já no Velho Testamento e no Código de Hamurabi, surge o imperativo ético e jurídico : “Extirparás o Mal do teu meio”. Todo governante ou cidadão é obrigado a lutar contra os assassinatos, os roubos, a hipocrisia, a má fé, as traições. Ninguém pode se desculpar, jogando a responsabilidade sobre o rei, os sacerdotes, os juízes. Por tal motivo, ocorre algo nas ordenações legais arcaicas, considerado cruel nos tempos modernos: pagavam pelo crime de um familiar todo o clan ou mesmo o povo inteiro.

Com a irrupção dos indivíduos na arena política, religiosa e jurídica (alguns dizem ter sido este um invento de Sócrates, outros de Jesus e mesmo de Paulo) a responsabilidade pelos crimes passou a ser encarada em duas frentes, a coletiva e a pessoal. Os erros são imputados ao indivíduo ou a um grupo, até mesmo a um coletivo, conforme a intenção, motivo, técnica empregada, maior ou menor ódio nos atos, cumplicidades em vários matizes. Restou o imperativo que se repete a cada instante: ninguém pode alegar desconhecimento da lei, ninguém pode alegar a própria torpeza para fugir das consequências de seus atos. Uma coisa, no entanto, é conhecer a lei. Outra, obedecê-la. Mesmo juristas capazes de perceber, nas vírgulas de um código penal, o certo e o errado, podem efetivar coisas assustadoras. Conhecimento e vontade não se unem com facilidade. Para a obediência legal, o saber e o querer devem ser desenvolvidos, no sentido do bem.

Platão tinha consciência desse ponto, pois ensinava que as leis escritas podem ser lidas e esquecidas pelos indíviduos e povos. A educação, no seu entender, era estratégica para evitar o desconhecimento e o olvido dos ordenamentos. Usando a metáfora tecnológica, ele diz que é preciso “tingir as almas com a tintura das leis”. Se um jovem apenas lê o texto legal, ou escuta alguém enunciá-lo oralmente, ele o esquece, diz ainda Platão, como os indivíduos que bronzeiam a pele na praia. O bronzeado logo desaparece. Assim também a lei. É preciso que elas sejam impressas na alma dos cidadãos. Se isto ocorre, eles obedecem não a algo externo (a polícia, o juíz, o professor, o pai, o governante) mas a si mesmos. A obediência, agora, significa fidelidade à própria mente e coração. Antes dessa unidade é inevitável que, para impôr obediência, seja preciso usar a força física externa à alma. Quanto menor obediência interior à lei - ou seja, quanto menos educação da inteligência e da vontade - mais violações existem, mais força física é requerida.

Rousseau e Kant copiam a noção platônica da obediência às leis. Rousseau proclama no capítulo sobre as leis (uso os manuscritos editados por Vaughn): “o único estudo conveniente para um bom povo é o das leis. É preciso que ele as medite sem parar, para observá-las, mesmo para corrigí-las, com as precauções que exige um assunto desta relevância, quando a necessidade é imperiosa e bem conhecida. Todo Estado no qual existem mais leis do que é possível conter na memória dos cidadãos é péssimamente constituído; e todo homem que não souber de cor as leis de seu país é péssimo cidadão; assim Licurgo desejou escrever as suas leis apenas no coração dos espartanos”. A nota de Rousseau é elucidativa: “Um lacedemônio, interrogado por certos estrangeiro sob a pena aplicada por Licurgo aos parricidas, respondeu que os assassinos de seus pais deveriam fazer pastar um boi no cume do monte Tegeta, de modo que o animal pudesse beber nas águas do rio Eurotas. ‘Como’, gritou o estrangeiro, ‘seria possível achar um tal boi?’ - ‘Mais facilmente’, replicou o lacedemônio, ‘do que um parricida em Esparta’. O terror pode conter os celerados; mas nunca é pelos grandes crimes que começa a corrupção do povo; para prevenir esses começos, é preciso empregar toda a força das leis”.

No Brasil, os próprios legisladores debocham das leis e as burlam, absolvem seus pares improbos e ostentam arrogante foro privilegiado; uma pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) mostra que 46,8% dos juízes por ela congregados considera o Supremo Tribunal Federal ruim, ou muito ruim, no quesito agilidade; a instrução pública é apenas um gordo conjunto de cargos, com imensas verbas para acertos políticos; a propaganda ensina a esperteza e não a confiança nos outros. É difícil que a lei seja gravada, em nossa terra, no coração das pessoas. Resulta a selvageria dos particulares, abonada pela selvageria dos que dominam o Estado. Estamos, portanto, nos limites do reino natural onde o homem é lobo do homem. Que ninguém lamente a força, único remédio, embora ineficaz, quando pessoas como os assassinos do Rio esquartejam uma criança em plena luz do dia, diante de todos. E a platéia cúmplice dança e bebe num bacanal nojento, a folia de Momo. Assim, só pode existir olvido das leis, sem obediência. Feras ativas ou passivas não têm intelecto ou coração.

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Este espaço é uma tentativa de colocar à disposição de pessoas interessadas alguns textos teóricos, certas observações críticas, análises minhas e de outros.

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