quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Feras Militantes

Correio Popular de Campinas
27/02/2007

Roberto Romano


Alguém pediu a justificativa do termo “feras” que usei na semana passada. A palavra choca os afeitos à distinção moderna e cristã entre mundo animal e humano. Existem agitadores políticos que rejeitam a leitura dos escritos que formam a nossa ordem civilizatória. Para tais indivíduos, a leitura de Platão e de Aristóteles é tempo gasto inutilmente. Afinal, a realidade é-lhes trazida pelas ordens do grupo infalível e santo que ordena como se deve pensar, escrever, falar, agir, amar ou odiar. Se pudessem, eles queimariam livros como a Santa Inquisição, mimetizando as fogueiras nazistas, a censura do stalinismo, os atos do Dipe e do Dops. Para que ler Maquiavel, se Lula já resolveu os problemas éticos, jurídicos e políticos, a tudo iluminando? Pensavam de maneira próxima os Tonton Macoute, os discípulos de Bokassa e de Idi Amin Dada.

Não refletiu desse modo Nicolau Maquiavel, o idealizador do Estado democrático e republicano. É conhecida a sua carta a um amigo, dizendo que durante o dia executava as tarefas banais da existência. À noite, colocava as melhores roupas, seguia para o silêncio do escritório e conversava com os antigos filósofos, estadistas, legisladores. Esta é a diferença: quem, à semelhança do sábio florentino, dialoga com os mestres do pensamento, gera ações e práticas que repercutem nos séculos. Quem só lê ou aplica a filosofia dos seus líderes, some na poeira do tempo, como os que seguiam os ensinos de Stalin sobre a lingüística. Quem dialoga com os clássicos, deles recebe um pouco de luz perene. Quem não vai além dos slogans partidários (unidos às agressões contra quem não aceita mordaças na mente e na boca) gasta sua vida pequena em pouco tempo. Assim que os seus donos conseguem o desejado, os executores do “sale boulot” (o serviço sujo) são mortos ou postos em silêncio ignóbil. Após a Noite dos Cristais, na qual os sabujos militantes da SA destruíram as lojas que pertenciam aos filhos de Israel, o pagamento veio com a Noite dos Longos Punhais (29 para 30 de junho, 1934). Na escuridão física os encardidos de alma foram eliminados, porque não tinham mais serventia.
As feras militantes garantem o assalto físico e moral contra os inimigos dos poderosos reais. Elas são perigosas porque ignoram limites. Se quiserem experimentar o que digo, leitores, procurem alguns militantes e deles ousem discordar. Antes, quando seus líderes não estavam no governo, eles apenas rosnavam. Agora, mordem a carne ou a reputação dos críticos. Logo, se não surgir resistência eficaz, podem estraçalhar ossos e músculos dos supostos inimigos. Algo é certo: quando fracassam os líderes, somem os militantes. Em Nuremberg foram julgados alguns dirigentes nazistas, o mesmo ocorreu após o 20 Congresso do PC da URSS.

Mas os milhões de militantes que perseguiram os judeus e os acusados de terrorismo, tanto na Alemanha quanto na União Soviética, nada sofreram. O mesmo ocorreu com os militantes irresponsáveis do macartismo. Eles apenas mudaram de opinião com a nova ordem política. A marca dos fanáticos, que favorece o seu aproveitamento pelos coordenadores de partidos, é a inocência canalha. Eles, literalmente, não sabem o que fazem. E não querem saber. Atacar alguém apenas porque não dobra a espinha ao dono do poder ocasional, traz ao militante medíocre e ressentido a ocasião rara de fazer algo notório. Com o ato baixo, cometido em nome da Causa, ele deixa por um átimo o zero em que habita. O militante não responde, não é responsável, porque não escuta as palavras interpostas entre o seu ódio e a lei.

As feras mais evidentes, no artigo anterior, são os bandidos que esquartejaram uma criança em plena luz diurna. Mas existem feras tão violentas quanto eles. Não por acaso, na República, Trasímaco, o defensor dos mais fortes, jogou-se contra Sócrates e seus amigos, “retesando-se, qual uma fera, investiu contra nós, como para nos dilacerar” (336 b) E qual era a tese de Trasímaco? “Cada governo estabelece as leis para sua própria vantagem (…) o justo é uma e mesma coisa: o vantajoso ao governo constituído; ora, este é o mais forte, donde segue, para todo homem que raciocina corretamente, que em toda parte o justo (…) é o vantajoso ao mais forte” (339a).

Os filhos de Trasímaco investem contra os críticos do mais forte. É bom recordar que militantes, em dias anteriores ao mando, anunciam diálogo, debate democrático e outras bravatas. Instalados nas soleiras dos gabinetes, tentam calar os opositores. São feras. Mas cedo ou tarde toda fera é jogada em gaiolas pelos próprios donos. O costume de estraçalhar pode produzir estragos indesejados pelos poderosos. Naquele instante, os bichos erram o bote, algo fatal para eles, mas sem maiores consequências. E quem responde pelas mortes éticas ou físicas causadas pelas suas garras certeiras?

Aos leitores

Este espaço é uma tentativa de colocar à disposição de pessoas interessadas alguns textos teóricos, certas observações críticas, análises minhas e de outros.

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PROFESSOR DE FILOSOFIA UNICAMP